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Hipercalvinismo

David Engelsma

Na maioria dos casos a acusação de “hipercalvinismo” não passa de um ataque enganoso contra o próprio calvinismo. Alguns odeiam o calvinismo ou a defesa consistente e sem concessões do calvinismo. Contudo estes hesitam em atacar o calvinismo de forma aberta e direta. Portanto eles disfarçam seu ataque como um ataque contra o “hipercalvinismo” e contra os “hipercalvinistas”.

Um claro e distintivo exemplo desse método enganoso e covarde de atacar o calvinismo é o ataque contra calvinismo feito pelo suposto evangelista John R. Rice em dois livros, o “Some Serious Popular False Doctrine”2e “Predestined for Hell? No!3. O capítulo 7 do primeiro destes livros tem como título “Hipercalvinismo – Uma Doutrina Falsa”, e a capa do segundo explica que o autor está ocupado “corrigindo os erros do hipercalvinismo”. Sob a pretensão de estar opondo-se ao hipercalvinismo, Rice combate a verdade que os homens são salvos pela graça soberana de Deus apenas e propõe a antiga heresia que o homem salva a si mesmo pelo exercício de seu livre-arbítrio.

Isto se torna óbvio no livreto sujo, “Predestined for Hell? No!“. As táticas do autor são as táticas mesquinhas que os arminianos vêm sempre usando contra a fé reformada. Como o título indica, o ataque contra a eleição e salvação pela graça soberana somente é dirigido especialmente contra a doutrina da reprovação. Os engenhosos arminianos sabem que os homens têm mais antipatia natural à reprovação do que qualquer outra doutrina bíblica e têm a impressão que podem por a fé reformada em maus lençóis diante dos expectadores se conseguirem fazer da reprovação o primeiro e principal assunto do debate. Isto foi exatamente o que Episcópio e o partido arminiano tentaram fazer em Dordt, quando, após terem falhado em suas estratégias políticas, propuseram ao Sínodo que primeiramente levasse em consideração a doutrina da reprovação4.

Então o autor faz uma caricatura da reprovação. Na capa do livro está esta imagem: um homem desconsolado e relutante é forçado a caminhar em direção às vívidas chamas do inferno, tendo uma espada tiranamente empunhada pelo braço de Deus apontada para si. Já na terceira página do livro, os calvinistas são taxados como pessoas que ensinam que “há bebês recém-nascidos no inferno“.

O conteúdo deste livro é um completo e explícito ataque contra os primeiros quatro dos famosos cinco pontos do calvinismo, uma rejeição da depravação total, eleição incondicional, expiação limitada e graça irresistível5.

Aquilo que Rice odeia com todo o seu coração se torna claro quando ele cita o homem que é, para Rice, o típico hipercalvinista, Herman Hoeksema. Parar ilustrar o hipercalvinismo, Rice cita do livro “Whosoever Will6de Hoeksema7. O que Hoeksema escreve neste parágrafo ofensivo? Que Deus é um tirano que se rejeita a escutar os clamores de pobres pecadores para serem salvos e os impele, por bem ou por mal, ao inferno? Nada do tipo. Ao invés disso, Hoeksema proclama estas verdades:

“[A salvação] é absolutamente divina. O homem […] não tem nenhuma possibilidade de cooperar com Deus em sua própria salvação […]. O pecador em si mesmo não tem nem capacidade nem desejo de receber essa salvação […]. Mas Deus ordenou e preparou esta salvação com liberdade absolutamente soberana para os Seus, para os Seus escolhidos apenas, e a eles Deus a concede […].”

Isto é tudo: a depravação total do homem por natureza; salvação através da livre e soberana graça apenas; a eleição graciosa de Deus para a salvação de alguns homens. Isto, diz Rice, é apogeu do hipercalvinismo. Mas na verdade, isto é simplesmente o calvinismo, a fé reformada histórica.

Não há necessidade de refutar os argumentos de Rice contra o calvinismo nem expor sua defesa do arminianismo a partir da Escritura, embora um amante da fé reformada seja extremamente tentado a fazer isto para manifestar a calamidade absoluta do arminianismo moderno. Rice caminha como um cego por toda Escritura, como Lutero disse a respeito de Erasmo, assim como um porco fuça em um saco de ração.

Dado o nosso propósito, é útil destacar duas coisas a respeito do grito de guerra contra o “hipercalvinismo” que se tornam claras em obras como estas de John Rice.

Primeiro, a acusação de “hipercalvinismo” mascara um ataque contra o calvinismo. Rice é um arminiano e um pelagiano. Ele admite acreditar que a salvação de todo homem depende da escolha de seu próprio livre arbítrio. Isto é arminianismo. Ele também sustenta que em Adão o homem morreu apenas potencialmente e que o homem natural que não tem nada além do testemunho de Deus na criação pode ser salvo por esta luz natural. Isto é puro pelagianismo. Rice é culpado por uma grande, “séria, falsa doutrina popular“: o homem salva a si mesmo pelo seu próprio desejo e esforço. Como tal, ele é um inimigo entranhado do calvinismo que sustenta a verdadeira doutrina: a salvação depende da misericórdia de Deus (Rm 9:16).

O ataque contra o calvinismo que na verdade usa a acusação de “hipercalvinismo” é outra das calúnias amontoadas sobras a fé reformada, como a conclusão dos Cânones de Dordt nos diz. É descrédito a causa de Cristo que aqueles que crêem na fé reformada devem sofrer nesta vida. Mas nós advertimos também, junto à conclusão dos Cânones de Dordt, os caluniadores para “que considerem o severo julgamento de Deus à espera deles“, e também instamos a todos os que confessam o nome de Jesus que não julguem nossa fé com base nas acusações de nossos inimigos. À luz do fato que os inimigos da fé reformada têm sempre apresentado esta fé erroneamente, hoje em dia os homens deveriam pelo menos considerar que a acusação de “hipercalvinismo” pode ser golpe sujo contra um calvinismo abrangente e consistente.

Segundo, é importante notar que no coração da oposição de Rice ao calvinismo encontra-se sua insistência que a doutrina do calvinismo torna a pregação, principalmente o chamado do evangelho, impossível. Na terminologia de Rice, o calvinismo destrói “o ganhar almas“. Ele escreve: “Esta doutrina (i.e., o calvinismo) insiste que nós não devemos instar que um homem se volte a Cristo. Ele não pode o fazer até que Deus o force a fazê-lo. Se Deus planejou que ele se perderá eternamente, ele não se voltará a Deus. Se Deus planejou que ele será salvo, entãoa graça irresistível, diz o hipercalvinista, o forçará a ser salvo”. No capítulo com o título “O Dano Causado pela Heresia do Hipercalvinismo”, as duas primeiras alegadas más consequências do calvinismo são: (1) “hipercalvinistas na realidade impedem e opõem-se à pregação e ao ganhar almas” e (2) “o hipercalvinismo é ou indiferente ou oposto à missões estrangeiras8.

Esta foi a acusação levantada contra a fé reformada pelos arminianos na época do Sínodo de Dordt. Os arminianos argumentaram que a eleição, a expiação limitada e a graça soberana excluem o sério chamado do evangelho a todos os que escutam a pregação. Nos Cânones as igrejas reformadas provaram que a acusação era falsa e que a pregação vívida, incluindo o sério chamado ao arrependimento e fé, mantém sua plena prerrogativa no esquema de doutrinas do calvinismo. A fé reformada faz plena justiça à pregação, inclusive ao chamado do evangelho, ao mesmo tempo que de todo o coração e sem reservas mantem a predestinação, expiação limitada e graça irresistível. A resposta da fé reformada à monótona alegação arminiana de que no esquema reformado não há espaço para o chamado do evangelho nunca é que esta restringe ou faz concessões em relação à predestinação ou à graça soberana.

Isso é esquecido hoje por muitos calvinistas, para a desgraça da fé que eles professam amar. À acusação que a fé reformada não pode chamar na pregação todos que a escutam a arrependerem-se e crerem, eles respondem comprometendo as doutrinas essenciais do calvinismo. Adotando à teoria da oferta bem-intencionada do evangelho, estas igrejas começam dizer “sim e não” às grandes doutrinas calvinistas da graça: “Sim, Deus amou e escolheu apenas alguns homens, mas, não, Ele também ama e deseja salvar a todos”; “Sim, a graça de Deus na pregação é irresistível, mas, não, a graça de Deus para alguns na pregação é incapaz de salvá-los”; “Sim, o Cristo da cruz é apenas para os eleitos, mas, não, Ele também é para os réprobos”. Esta é a teologia da oferta. Esta não é a forma de ajustar no sistema reformado o sério chamado do evangelho a todos que o escutam. Esta não é a forma de salvaguardar a pregação vívida. Esta é a forma de renunciar a fé reformada. Esta é a forma de perder o próprio evangelho da graça.

Se a acusação de “hipercalvinismo” geralmente é um ataque disfarçado contra próprio calvinismo, surge a questão se afinal alguma vez já houve, ou há agora, uma teologia que possa ser corretamente chamada de hipercalvinismo. Ou esta acusação não passa de um bicho papão teológico?

Nós não nos preocuparemos com os termos em si, com a questão se “calvinismo” é um bom nome para a fé reformada e se “hipercalvinismo” é uma descrição precisa da teologia que perverteu o calvinismo genuíno fundamentalmente. Nós estamos interessados apenas com a questão se alguns que confessavam o calvinismo fizeram inferências não bíblicas e injustificadas nas doutrinas do calvinsimo de forma que a sua doutrina e prática foi “além do calvinismo” e merecia ser chamada de hipercalvinismo.

A resposta a esta questão é que já houve um ensinamento e uma prática correspondente que pode ser propriamente chamada de hipercalvinismo e que poderia dar ocasião para que alguns hoje em dia (erroneamente) interpretem a negação da oferta bem-intencionada do evangelho por parte das Protestant Reformed Churches9 como hipercalvinismo. É importante, entretanto, ser claro em relação ao que é que faz com que uma teologia vá além dos limites do verdadeiro calvinismo em direção a esfera do hipercalvinismo.

Ao contrário do que muitos pensam, a doutrina do supralapsarianismo não faz com que alguém se torne hipercalvinista. Sempre houve lugar para o supralapsarianismo na fé reformada10. Embora as confissões reformadas sejam infralapsarianas – ainda de forma mais deliberada, os Cânones de Dordt decidiram pelo infralapsariano ao contrário do forte apelo de Gomarus pelo supralapsarianismo -, elas não condenam o supralapsarianismo como não reformado ou hipercalvinista.

Também é verdade que não se torna um hipercalvinista aquele que sustenta as doutrinas da justificação eterna e regeneração imediata. Teólogos reformados sadios tanto negaram quanto afirmaram estes ensinos.

Também não é o caso que o hipercalvinismo é uma questão de forte ênfase no eterno conselho de Deus ou da soberania de Deus na salvação. Nunca houve algum verdadeiro calvinista que não possuísse esta forte ênfase.

Mas o hipercalvinismo é a negação do fato de que Deus, na pregação do evangelho, chama todos os que escutam a pregação a crerem e arrependerem-se. É a negação de que a igreja deveria chamar a todos na pregação. É a negação que os não regenerados têm o dever de arrepender e crer. O hipercalvinismo é manifesto na prática do pregador que endereça o chamado do evangelho, “arrependa-se e creia no Cristo crucificado”, apenas àqueles na sua audiência que mostram sinais de regeneração e, desse modo, de eleição, isto é, alguma convicção de pecado e algum interesse na salvação.

Este erro na verdade apareceu na história do calvinismo na Inglaterra11. Esta foi a posição de vários ministros batistas e congregacionais, incluindo Joseph Hussey (1660-1726), Lewis Wayman (morreu em 1764), John Brine (1703-1765) e o famoso John Gill (nasceu em 1697). Wayman, Brine e Gill estavam envolvidos em uma controvérsia teológica conhecida como “a questão moderna”. “A questão moderna” era: “A fé salvífica em Cristo é um dever exigido pela lei moral de todos aqueles que vivem sob a revelação do Evangelho?” Basicamente, a questão é se na pregação Deus requer do descrente reprovado que ele creia em Cristo. Wayman, Brine e Gill negavam isto. Visto que muitas passagens do Novo Testamento ensinam plenamente que Cristo e os apóstolos de fato ordenavam todos em suas audiências a arrependerem-se e crerem, tanto réprobos quanto eleitos, estes homens recorreram a uma distinção entre arrependimento legal e evangélico e entre fé comum e salvífica. “Arrependimento legal” e “fé comum”, de acordo com esta distinção, são praticamente sinônimas das exigências da lei, as quais Deus dirige a todos; “arrependimento evangélico” e “fé salvífica”, desta forma, constituem o real chamado do evangelho, a qual Deus confere apenas aos eleitos regenerados. Esta distinção artificial e impossível serve apenas para demonstrar que estes homens negavam que Deus chama todo o que escuta a pregação a arrepender-se de seus pecados e crer no Cristo apresentado no evangelho, e que arrepender-se e crer é o dever de todo homem que é alvo da pregação. Mas estes homens chamavam a sua posição de “a negação das ofertas da graça” e isto é o que muito pensam quando escutam que alguma igreja nega a oferta do evangelho.

As Igrejas Batistas Gospel Standard na Inglaterra continuam mantendo este hipercalvinismo, como vários dos artigos de sua confissão indicam:

XXVI. Negamos o dever da fé e o dever do arrependimento – significando estes que arrepender-se e crer de forma espiritual e salvífica é o dever de todo homem (Gn 6:5; Mt 15:19; Jr 17:9; Jo 6:44, 65). Também negamos que há qualquer capacidade natural no homem para algum bem espiritual, seja qual for. De forma que rejeitamos a doutrina que os homens no estado natural devam ser exortados a crerem ou voltarem-se a Deus (Jo 12:39, 40; Ef 2:8; Rm 8:7,8; I Co 4:7).

XXXIII. Portanto, se neste tempo presente os ministros se dirigirem à não convertidos, ou a todos em uma congregação mista de forma indiscriminada, chamando-os a arrependerem-se de forma salvífica, crerem e receberem a Cristo, ou realizarem qualquer outro ato que dependa do novo poder criativo do Espírito Santo, esta ação é, por um lado, sugerir alguma capacidade na criatura, e, por outro lado, negar a doutrina da redenção especial.

XXXIV. Cremos que quaisquer destas expressões que transmitem aos ouvintes a crença que eles possuem certo poder para fugir para o Salvador, para aproximarem-se de Cristo, para receber a Cristo, enquanto ainda estão em um estado não regenerado, de forma que ao menos que eles assim se aproximem de fato, etc., eles perecerão, não são verdadeiras e devem, portanto, ser rejeitadas. E além disso cremos que não temos garantia escriturística para entender as exortações no Antigo Testamento direcionadas aos judeus na aliança nacional com Deus e aplicá-las em um sentido espiritual e salvífico a homens não regenerados.12

Há também igrejas batistas nos Estados Unidos que se opõe de forma veemente à “oferta do evangelho” em nome do calvinismo, mas que na verdade são contrários a chamar todos a crerem em Cristo exceto os eleitos regenerados.

Parece que homens caíram neste erro reagindo ao arminianismo ascendente de seu tempo. Gill, por exemplo, era um contemporâneo de John Wesley, o notório e confesso arminiano. Pode até ser o caso que a prática de referir-se ao chamado do evangelho como “a oferta” tenha contribuído para o erro dos hipercalvinistas ingleses. O assunto do debate era, na realidade, aquilo que a teologia reformada chama de “o chamado externo do evangelho”. Mas ambos os lados na controvérsia se referiam a este chamado como “a oferta do evangelho13. Já que o termo “oferta” tem um sabor arminiano, não é de se surpreender que os pretensos defensores do calvinismorejeitaram a oferta, especialmente tendo em mente que a concepção arminiana da oferta era a opinião generalizada naquele tempo. O problema foi que ao jogar fora a água banheira, eles jogaram o bebê junto, isto é, o chamado externo para todos os que ouvem o evangelho, réprobos e eleitos de forma semelhante.

Aqueles que repudiavam o chamado externo do evangelho para todos os que escutam a pregação certamente criam estar defendendo o calvinismo. Esta é a razão porque seu erro pode ser chamado de hipercalvinismo. Isto fica muito claro no Artigo 33 dos artigos confessionais dasIgrejas Gospel Standard. Este artigo argumenta dizendo que o chamado a uma pessoa não convertida para arrepender-se e crer implicaria em “capacidade na criatura”, isto é, a habilidade desta pessoa não convertida de fazer aquilo que este chamado a convida a fazer. Em outras palavras, o chamado para o não convertido implicaria em livre-arbítrio e seria uma negação da depravação total. Igualmente, tal chamado seria uma negação da “doutrina da redenção especial”, isto é, a doutrina da expiação limitada. O argumento é que se todos são chamado a crer em Cristo, Cristo deve ter morrido por todos e deve desejar ser o Salvador de todos. Mas visto que Cristo morreu apenas pelos eleitos, apenas os eleitos devem ser chamados na pregação.

Embora seja apresentado como verdadeiro calvinismo, o ensinamento que nega o chamado do evangelho a todos que escutam a pregação não é doutrina bíblica, reformada. É de fato verdade que Deus chama apenas os predestinados, ou eleitos, com o chamado salvífico, eficaz. Estes e apenas estes Deus chama, quando Ele os dirige de forma eficaz a si mesmo pela obra soberana do Espírito Santo em seu coração, até mesmo quando Ele diz “venha!” na pregação do evangelho. Este é o ensinamento de Romanos 8:30: “E aos que predestinou, também chamou […].” Mas também há um sentido no qual, de acordo com a Escritura, Ele chama aqueles que não são eleitos na pregação do evangelho. Mateus 22:14 ensina isto: “Pois muitos são chamados, mas poucos são escolhidos”. Mais pessoas do que os eleitos são chamadas por Deus. Como fica evidente a partir da parábola que precede, a parábola da festa de casamento do rei, a referência é em relação ao chamado que Deus faz através de Sua igreja e os pregadores dela quando Ele comanda que todos os que escutam o evangelho arrependam-se de seus pecados e creiam em Jesus Cristo. Deus chama todos os homens para vir para a festa da salvação preparada através da morte e ressurreição de Cristo. A resposta de muitos a este chamado é que eles o rejeitam. Por fazer isso, eles trazem sobre si mesmos o julgamento cheio de ira de Deus, terrível justamente porque é a punição por rejeitar o chamado do evangelho. É deles o pecado dos pecados: desprezar o Cristo apresentado a eles no evangelho e rejeitar o chamado de Deus para crer nEle.

Que o chamado ao arrependimento não é restrito aos regenerados, ou “ao pecador consciente”,mas se dirige a todo o que o ouve a pregação é ensinado em Atos 17:30: “[Deus] agora ordena que todos, em todo lugar, se arrependam”. Esta era a prática dos apóstolos. Após ter proclamado Cristo a sua audiência, eles chamavam todos a arrependerem-se de seus pecados e crerem em Cristo (v. At 3:19; 8:22: 13:38-41: 20:21). Este era o ministério de João Batista. Ele “foi para a terra de Israel […] [e] pregando […] dizia:Arrependam-se‘” (v. Mt 2:21; 3:1, 2). Ele também disse aos Fariseus e Saduceus, “[uma] raça de víboras”: “Deem fruto que mostre o arrependimento!” (Mt 3:1-12). Esta era a natureza da pregação do próprio Jesus: “Jesus foi para a Galileia, proclamando as boas-novas de Deus.O tempo é chegado, dizia ele.O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas-novas!‘” (v. Mc 1:14, 15).

O que a fé reformada, o calvinismo genuíno confessa em relação ao chamado do evangelho é claramente demonstrado nos Cânones de Dordt. A promessa que os crentes têm vida eterna e a ordem para arrepender-se e crer devem ser proclamadas “sem discriminação a todos os povos e a todos os homens, aos quais Deus em seu bom propósito envia o Evangelho” (II.5). O próprio Deus “sinceramente”, isto é, seriamente, chama a todos os que escutam o evangelho. Ele o faz através do próprio evangelho. Quando Ele o faz, Ele “séria e sinceramente” declara que “Lhe agrada […] que aqueles que são chamados venham a Ele” (III, IV.8). Uma consequência deste sério chamado é que muitos “não vêm, nem são convertidos”. Isto não é culpa do evangelho, nem de Cristo, nem de Deus, mas é destes mesmos, pois eles rejeitaram impiedosamente a palavra da vida (III, IV.9). Entretanto, também há, como consequência, alguns que obedecem o chamado do evangelho e são convertidos. Isto não é devido ao livre arbítrio ou qualquer habilidade nestes, “como se [por isso] ele [o homem] se distinguisse […] de outros”, mas é devido à graça soberana de Deus somente. A razão por que alguns vêm a Cristo é porque Deus de forma eficaz os atrai pelo Seu Espírito. E Ele os atrai, em distinção aos outros, porque Ele os elegeu eternamente, ao passo que eternamente reprovou os outros (III, IV.10; cf. também I.6).

Os Cânones refutam poderosamente a acusação arminiana de que as doutrinas da predestinação, expiação limitada, depravação total, graça irresistível e perseverança dos santos impedem, se é que na verdade não tornam nulas, a pregação vívida, especialmente o chamado do evangelho. Algo surpreendente sobre os Cânones é sua atitude quando se recusaram a reagir à heresia arminiana de forma a negar o chamado do evangelho a todos, ou tornando-se tímidos e hesitantes em relação a este chamado. Eles mostram que a fé reformada não permitirá que o arminianismo a leve para o outro extremo, o hipercalvinismo.

Porém foi exatamente isto que aconteceu com aqueles que negaram o chamado do evangelho a todos os que escutam a pregação. Aqueles que negaram o chamado externo do evangelho por receio que este comprometeria o calvinismo estavam errados em dois aspectos. Em primeiro lugar, eles cometeram um erro ao supor que o chamado ou o comando aos incrédulos não regenerados implicaria em uma habilidade nos não regenerados de fazer o que Deus exigiu, isto é, arrepender-se e crer. Eles argumentavam que se Deus ou a igreja chamasse a todos para crer em Cristo isto implicaria na falsa doutrina do livre arbítrio. Que este foi o erro dos hipercalvinistas é visto claramente no Artigo 33 dos artigos confessionais das Igrejas Gospel Standard: “[dirigir-se]à não convertidos […] chamando-os para arrependerem-se de forma salvífica, crerem e receberem a Cristo […] é […] sugerir alguma capacidade na criatura”. Por mais estranho que pareça, este é o mesmo erro que os pelagianos e arminianos vêm sempre cometendo: supor que as exortações e exigências das Escrituras implicam em alguma habilidade humana para cumpri-las. Os pelagianos e arminianos têm sempre argumentado que, visto que Deus comanda que os homens creiam, eles têm que ter a habilidade de crer. O hipercalvinista, por outro lado, concordando que o chamado para crer implicaria em livre-arbítrio, nega-o. O erro de ambos se encontra na incapacidade de ver que de nenhuma forma o chamado de Deus a pecadores pressupõe a habilidade dos pecadores de prestar atenção ao chamado.

Lutero expôs o erro da noção que o comando de Deus implica em uma habilidade correspondente no homem em sua controvérsia sobre a escravidão da vontade com o pelagiano Erasmo. Em resposta à defesa de Erasmo de um livre-arbítrio com base no fato que Deus chama os homem a escolherem, voltarem-se a Deus e arrependerem-se, Lutero escreveu:

“[…] Pelas palavras da lei o homem é admoestado e ensinado não em relação ao que ele pode fazer, mas ao que deve fazer. Como é possível que vocês teólogos sejam duas vezes mais estúpidos que meninos do primário, e nisso, assim que se apoderam de um simples verbo imperativo vocês inferem um significado indicativo, como se no momento em que algo é comandado isto fosse feito ou pudesse ser feito? As passagens da Escritura que você cita são imperativas; e elas não provam ou estabelecem nada em relação à habilidade do homem, mas apenas formulam o que deve e o que não deve ser feito.

A nona questão do Catecismo de Heidelberg ensina, em relação à exigência de obediência perfeita que Deus faz em Sua lei, que Deus requer dos homens exatamente aquilo que estes não são capazes de fazer: “Deus não age injustamente com o homem ao exigir em Sua lei aquilo que o homem não consegue cumprir? Resposta: Não, pois Deus criou o homem de tal forma que ele era capaz de a cumprir. Mas o homem, sob a instigação do diabo, em desobediência deliberada, privou a si mesmo e a todos os seus descendentes destes dons”. Embora o Catecismo aqui se refira à exigência divina ao homem na lei, o princípio valida o comando para arrepender e crer que Deus dá aos não regenerados no evangelho. O chamado para crer não implica, nem tem alguma base, no livre-arbítrio do pecador. Ao contrário, ele indica o dever do homem e mostra a ele o que agrada a Deus.

O segundo erro do hipercalvinismo em sua negação do chamado do evangelho foi o receio de que o chamado do evangelho ao ímpio não regenerado prejudicaria as doutrinas da eleição e da expiação limitada. Isto é evidente no Artigo 33 das Igrejas Gospel Standard, citado acima, que continua: “[…] e […] negar a doutrina da redenção especial”. Isto de fato seria o caso se o chamado ao réprobo expressasse o amor de Deus por ele e manifestasse um desejo de Deus de salvá-lo. Mas este não é o caso. Quando Deus envia o evangelho a todas as nações, apresentando o Cristo crucificado a todos os que ouvem o evangelho e chamando todos os que ouvem a arrependerem-se de seus pecados e crerem naquele Cristo, o Seu propósito é salvar os eleitos e os eleitos apenas. O amor que envia o evangelho, como o amor que enviou Cristo na plenitude dos tempos, é o amor de Deus pela igreja eleita. Este amor é o amor soberano. Enquanto o chamado para arrepender-se e crer é proclamado, Deus Espírito Santo opera aquele arrependimento e fé no coração dos eleitos na audiência. Ele nos dá aquilo que Ele nos chama a fazer e Ele o faz através do chamado. “Vem!”, ele diz, e este chamado soberanamente gracioso nos leva irresistivelmente a Cristo.

Esta é a confiança de todo pregador quando este chama homens para arrependerem-se e crerem: Deus fará este chamado efetivo nos eleitos. Em relação aos outros na audiência, o chamado também vem a eles, seriamente. Mas o chamado não expressa o amor Deus por eles ou implica que Jesus tenha morrido por eles. Por este chamado, Deus os confronta com seu dever e os mostra o que agradará a Ele. Mas Seu propósito com o chamado a eles não é um propósito salvífico. Pelo contrário, é o Seu propósito torná-los inescusáveis e endurecê-los (v. Rm 9:18; Mt 11:25-27).

Sempre há um efeito duplo da pregação do evangelho, inclusive do sério chamado do evangelho a todos os o ouvem. Este efeito ocorre de acordo com o propósito soberano de Deus para com esta pregação e chamado: “Mas graças a Deus, que sempre nos conduz vitoriosamente em Cristo e por nosso intermédio exala em todo lugar a fragrância do seu conhecimento; porque para Deus somos o aroma de Cristo entre os que estão sendo salvos e os que estão perecendo. Para estes somos cheiro de morte; para aqueles, fragrância de vida. Mas quem está capacitado para tanto?” (2Co 2:14-16).

Os efeitos práticos do hipercalvinismo em sua negação do chamado do evangelho a toda a gente e em sua tentativa de limitá-lo aos eleitos nascidos de novo são desastrosos. Em síntese, a consequência não é nada menos que a perda da pregação vívida do evangelho, primeiro na esfera das missões, e consequentemente, de forma inevitável, na própria igreja. O exemplo clássico disto é a famosa resposta de J. C. Ryland, amigo chegado de John Gill, ao apelo de William Carey às sociedades missionárias para pregar o evangelho na Índia: “Sente-se, jovem moço. Quando Deus quiser converter os ímpios, Ele o fará sem a sua ou minha ajuda”. Embora o velho Ryland pudesse estar preocupado em proteger-se das corrupções causadas pelo arminianismo em missões, sua noção de que a soberania de Deus na salvação tornava a pregação no campo missionário desnecessário era falsa. Se aplicada de forma consistente, esta noção excluiria não apenas a pregação aos pagãos mas também a pregação aos santos. A réplica bíblica e a confissão reformada é: o Deus soberano se compraz em salvar Seu povo por meio da pregação do evangelho.

Remover o chamado da pregação é violentar o próprio evangelho. O chamado para crer não é um apêndice ao evangelho, para ser adicionado ao fim como no jogo de colocar o rabo no burro. Toda vez que o evangelho é pregado, onde quer que seja pregado, o chamado para arrepender-se e crer é anunciado a todos o que o escutam, quer de forma implícita ou explícita. Geralmente os apóstolos fizeram o chamado explícito: “Arrependa-se! Creia!” Algumas vezes o chamado estava implícito, como no sermão na Antioquia da Pisídia registrado em Atos 13. Paulo não disse explicitamente “creia”. Mas a sua afirmação no verso 39, que a justificação vem apenas pela fé em Cristo, não pela lei, e sua advertência nos versos 40 e 41 contra aqueles que se recusam a crer anuncia o chamado de forma clara e audível: “Creia no Cristo crucificado e ressurreto!” A mensagem proclamada no evangelho é algo que nunca deve ser meramente recebido como informação, e, por outro lado, também não sugere que Deus esteja satisfeito com esta atitude. A mensagem do evangelho é a mensagem do Filho de Deus feito carne, crucificado e ressurreto para o perdão dos pecados e vida eterna. Deve-se crer no evangelho e deve-se crer no Cristo apresentado no evangelho – hoje. Nada mais serve. Portanto, o evangelho chama a todos os que ouvem as boas novas.

Igualmente, a tentativa de limitar o chamado aos regenerados é uma tarefa impossível. Ela põe diante de qualquer ministro uma tarefa impossível. Antes de ele chamar um pecador a arrepender-se e crer, ele tem que determinar que o pecador é nascido de novo. Mesmo se alguém de fato demonstrar certa tristeza pelo pecado, o ministro deve determinar se esta tristeza é piedosa ou se é a tristeza do mundo. O resultado disso será que um homem, com receio de comprometer o calvinismo por chamar um não regenerado, chamará quase ninguém. Isto é inverter as ações de Deus. Pela causa dos eleitos, Deus faz com que a igreja chame a todos os que ouvem a pregação; com medo de chamar um réprobo, o hipercalvinista tende a não chamar ninguém.

Porém, condenar o hipercalvinismo, entretanto, não toca a rejeição protestante reformada da oferta bem-intencionada do evangelho. Entre o chamado sério a todos os que ouvem o evangelho e a oferta bem-intencionada do evangelho, há um vasto abismo, o abismo que separa a fé reformada histórica do arminianismo.

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Tradução: David Cecilio
Revisão: Thiago McHertt
www.firelandmissions.com

Para material Reformado adicional em Português, por favor, clique aqui

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1 O conteúdo deste corresponde ao 1º capítulo (Hyper-Calvinism, pág. 9 a 27) da obra de Engelsma.
2 Tradução: Algumas Sérias Falsas Doutrinas Populares.
3 Tradução: Predestinado ao Inferno? Não!
4 Sábia e justamente o Sínodo se recusou a seguir esta ordem. Ele começou com a eleição e salvação pela livre graça soberana de Deus. A resposta a questão “alguns homens são soberana e eternamente ordenados por Deus ao inferno?” é “sim”. Mas isto não é primário. A eleição divina de sua igreja em Jesus Cristo é primária. A questão entre os reformados e os arminianos também não é a reprovação. Salvação por graça com base na eleição é a questão. Hoje também, nós, defensores da salvação por graça não devemos permitir que os arminianos determinem nossas prioridades e fixem o que deve ser enfatizado como primário e central.
5 Rice afirma acreditar no quinto ponto do calvinismo, a perseverança dos santos, a qual ele chama de “segurança eterna“. Esta é uma estranheza insignificante de alguns do lado arminiano. Esta posição de alguns arminianos foi engenhosamente caracterizada como o ensino que “você pode entrar quando quiser (i.e., na salvação), mas você não pode sair“. Na realidade, existe uma diferença básica entre o ensinamento de Rice da segurança eterna e a doutrina reformada da perseverança. Para Rice e sua laia, a segurança eterna é a certeza que todo aquele que fizer uma decisão barata por Cristo irá para o céu, não importando como ele viverá após ter feito a decisão. A doutrina reformada da perseverança é a verdade que Deus preserva os eleitos regenerados através da santificação da vida (cf. os Cânones de Dordt, V).
6 Tradução: Quem Quiser (em referência a Mt 16:25; Mc 8:35; Lc 9:24).
7 J. Rice, Predestined, pág. 11 e 95 em diante.
8Ibid.
9 Tradução: Igrejas Protestantes Reformadas.
10 Calvinistas como Theodoro Beza, Abraham Kuyper e Herman Hoeksema eram supralapsarianos. A questão do infralapsarianismo vs. supralapsarianismo relaciona-se à ordem dos decretos de Deus. A questão básica sendo discutida é esta: o decreto da predestinação vem antes ou depois do decreto da queda do homem no eterno conselho de Deus? O supralapsarianismo afirma que o decreto da predestinação é anterior (do latim supra) ao decreto da queda (do latim lapsus); o infralapsarianismo afirma que o decreto da predestinação é posterior (do latim infra) ao decreto da queda. Tanto supralapsarianos e infralapsarianos confessam que Deus decretou a queda do homem e o decreto da predestinação em um decreto eterno. Eles estão em completa concordância em relação à natureza da predestinação como um decreto de Deus, sendo ele duplo, soberano, incondicional e eterno.
11 Em relação à história, e não em em relação à análise dela, sou grandemente dependente da obra de Peter Toon, “The Emergence of Hyper-Calvinism in English Nonconformity 1689-1765“. Confira também Andrew Fuller, “The Complete Works of the Rev. Andrew Fuller“, especialmente “The Gospel Worthy of All Acceptation, or the Duty of Sinners to Believe in Jesus Christ”. Fuller se opõe ao hipercalvinismo de Brine, embora ele considere Hussey e Gill como em concordância com Brine. Embora as expressões de Fuller não sejam sempre corretamente reformadas, é evidente em seus escritos que seus oponentes negavam que a fé é um dever do ímpio e, portanto, que o chamado do evangelho se dirige a eles.
12Articles of Faith of the Gospel Standard Aid and Poor Relief Societies, pág. 14, 16, 17.
13 O livro de Hussey tinha como título “God’s Operations of Grace but No Offers of His Grace” – “As operações de graça e não ofertas de graças de Deus“. Este livro foi publicado em uma edição abreviada pela Primitive Publication. Andrew Fuller, criticando o hipercalvinismo de Hussey e doas outros, afirmou “a livre oferta de salvação a pecadores”.
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