Menu Close

Justificação: O Coração do Evangelho

Prefácio

Este livreto apresenta, em forma impressa, três palestras que foram dadas na Conferência de Inverno de 2006 promovida pelo Comitê de Evangelismo da First Protestant Reformed Church1 em Holland, MI. O tema da conferência era “Justificação: O Coração do Evangelho“.

Este tema foi escolhido tendo em vista o fato de que muitos hoje em dia, mesmo em círculos reformados conservadores, estão negando uma verdade fundamental da fé reformada: a justificação pela fé somente. A justificação está sendo redefinida. A palavra “somente” está sendo descartada. Diz-se que o homem é justificado pela fé e pelas obras.

Expressamos nosso agradecimento aos três oradores por suas oportunas palestras, que claramente confrontam e combatem os erros com relação à doutrina da justificação.

Cremos que fazer essas palestras disponíveis em forma de livreto servirá para lembrar ao leitor a importância da defesa desta verdade – uma verdade que é, de fato, o próprio coração do Evangelho da graça e salvação de Deus através do Senhor Jesus Cristo.

Que Deus se agrade em usar este livreto como um meio de nos manter firmes na fé. Que este livreto possa servir para Sua glória, bem como para a salvação e conforto do Seu povo.

O Comitê de Evangelismo da
First Protestant Reformed Church em Holland, MI.


A Justificação Pela Fé Somente

Rev. Ronald Van Overloop

Introdução

É meu privilégio poder falar com vocês nesta noite sobre um assunto tão importante. É objetivamente importante porque este foi o assunto principal da Reforma Protestante do século XVI, e porque permanece como tal nas igrejas reformadas. E é subjetivamente importante para todo filho de Deus, porque saber este assunto é saber como sou justo diante de Deus.

Martinho Lutero sustentou que esta verdade era a diferença entre uma igreja de pé e uma igreja falida. Se uma igreja defende a verdade da justificação pela fé somente, então, segundo o julgamento de Lutero, era uma igreja de pé. Se ela não o fizesse, então ela estava falida. A importância da verdade da justificação pela fé somente é também evidenciada no fato de que dois credos que surgiram na Reforma, a Confissão Belga e o Catecismo de Heidelberg, mantiveram e defenderam esta verdade, e eles o fizeram através dos termos mais precisos, poderosos e reconfortantes possíveis2.

A importância dessa verdade também pode ser vista no tipo de atenção que Satanás dá a ela. Ao longo da história da igreja, Satanás tem atacado a verdade da justificação pela fé somente. Alguns de seus ataques mais enganosos têm sido e são feitos quando ele distorce a linguagem, usando as palavras “justificação pela fé“, mas fazendo elas significarem algo diferente. Na maioria das vezes, Satanás ataca o uso da palavra “somente“. Aqueles que identificam sua posição como “Visão Federal” estão atacando esta verdade fundamental e preciosa, o fazendo da maneira mais enganosa possível. Eles falam sobre o fato de que a justificação é pela fé e pela graça, mas eles acrescentam que a justificação não é apenas pela fé, mas também pelas obras que fluem da fé. O resultado é que a justificação não é pela fé somente!

E a importância da verdade da justificação pela fé somente é experimentada. Foi assim na vida de Martinho Lutero. E todo crente tem momentos em que ele se pergunta como pode comparecer diante do Deus santo, cujos olhos não contemplarão a iniquidade. Todo crente tem consciência de seus pecados e da presença da grande maldade dentro de si. Nós nos perguntamos: quando o grande dia do julgamento vier, como saberei que eu poderei comparecer àquele tribunal sem terror? Ali, tudo que eu fiz, disse e pensei, será exposto. Como posso ansiar por esse dia com um confortável senso do favor de Deus? Como posso ter essa certeza quando a minha consciência me acusa que eu terrivelmente tenho transgredido todos os mandamentos de Deus? Como posso ter essa certeza quando outros apontam os meus erros? Como posso comparecer diante de Deus? Por que Ele me recebe? A resposta a estas profundas perguntas é encontrada apenas na verdade da justificação pela fé somente. No que diz respeito a experiência de cada filho de Deus, esta verdade é o coração do Evangelho.

O Que é a Justificação?

O que é a justificação? Herman Hoeksema a definiu como um ato da graça de Deus, no qual Ele imputa – credita na conta legal – de quem é culpado e condenado no entanto eleito, Sua perfeita justiça em Cristo, absolvendo-o de toda a sua culpa e punição com base no mérito da obra de Cristo, e dando a este pecador o direito à vida eterna. A justificação é uma parte da salvação do pecado através de Cristo, uma vez que Deus aplica a salvação a cada um de Seus eleitos.

Nossos credos falam da justificação da mesma forma. Tanto a Confissão Belga quanto o Catecismo de Heidelberg descrevem a justificação como uma obra de Deus na vida de um crente. A Escritura declara:

Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito. Pois aqueles que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que Ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, também chamou; aos que chamou, também justificou; aos que justificou, também glorificou” – Rm 8:28-30.

Esta passagem fala da justificação como uma obra de Deus – Sua declaração legal na consciência do pecador eleito, chamado, que teme a Deus. Quando falarmos da justificação nesta noite, vamos estar falando desta como uma parte da obra de Deus de salvar todo o pecador que é eleito, dando a ele a salvação do pecado através de Cristo. A justificação é Deus declarando à consciência de Seus filhos regenerados e chamados, que eles são perdoados e justos.

Deus por meio de Seu Espírito fala à consciência do pecador humilhado e quebrantado, sobre o Seu ato de mudar a posição legal dele perante Deus, o Juiz, de um estado de culpa para um estado de inocência. Deus fala com o pecador arrependido, sobre Sua obra de tê-lo justificado em Cristo. A parábola de Jesus sobre o fariseu e o publicano conclui com o publicano indo “para casa justificado” (Cf. Lc 18:10-14). O fariseu e o publicano foram ao templo para orar. O fariseu, em pé, orava no íntimo: “Deus, eu Te agradeço porque não sou como os outros homens“. O publicano encontrou um lugar em um canto distante e ali humildemente implorava por misericórdia – piedade imerecida de Deus a um pecador miserável. Deus falou na consciência daquele quebrantado e humilde pecador, dando a ele uma consciência de que Deus tinha feito algo por ele. O humilde pecador saiu do templo justificado, regozijando-se no conhecimento e na garantia da sua justificação. A justificação é o humilde pecador ouvir Deus declarar que o seu estado jurídico perante o santo e justo Juiz foi mudado de um estado de culpa para um estado de inocência. Acreditando no que Deus havia falado por meio de Seu Espírito à sua consciência, o publicano voltou para casa já não mais batendo no peito como fez no templo, mas feliz com a bem-aventurança da justificação.

Embora a declaração de Deus da justificação de Seus filhos eleitos tenha acontecido uma vez na cruz de Cristo, ainda assim a justificação que acontece na consciência de Seus filhos ocorre repetidamente. Toda vez que o pecador se arrepende, Deus dá ao humilhado pecador o conhecimento de que todos os seus pecados e sua maldade são perdoados em nome de Jesus. Mas por que os filhos do Pai celestial são ensinados a orar repetidamente: “perdoa as nossas dívidas, assim como perdoamos aos nossos devedores“? Para responder a esta pergunta os nossos pais espirituais usaram a linguagem da justificação no Catecismo de Heidelberg:

Contente-se por causa do sangue de Cristo por não imputar a nós, pobres pecadores, nossas transgressões, nem a depravação a qual está sempre cravada em nós3.

Toda vez que oramos na quinta petição da oração do Senhor, estamos pedindo a nosso Pai no céu para nos justificar, ou seja, para não imputar a nós os nossos pecados e a maldade que existe dentro de nós. A justificação é repetida, não porque o ato de Deus da justificação é imperfeito, mas porque o pecador repetidamente peca e precisa ser relembrado, repetidas vezes, que seus pecados não são imputados a ele.

Há dois elementos principais na declaração de Deus da justificação de um pecador eleito. O primeiro é negativo e o outro é positivo. O primeiro elemento da justificação é que Deus informa ao eleito ímpio que ele está perdoado, libertando-o de toda a culpa e vergonha por seus pecados. O pecador sabe que ele é apenas digno da condenação e sua consciência o condena (Cf. Lc 18:13). Mas Deus declara que ele é perdoado – perfeitamente inocente. Ouça oCatecismo de Heidelberg:

Ainda que a minha consciência me acuse de ter transgredido gravemente todos os mandamentos de Deus, e não ter guardado nenhum deles, e ainda ser inclinado a todo o mal, todavia, Deus me dá, sem nenhum mérito meu, mas apenas por pura graça, a perfeita satisfação, a justiça e a santidade de Cristo; como se eu nunca tivesse tido nem cometido pecado algum4.

Deus perdoa. Ele tira tanto a minha condenação, quanto a pena que eu mereço, a vergonha que vem com a pena, e a consciência da culpa que levou o publicano a bater no peito no canto mais distante do templo. Deus declara que o nosso pecado se foi. Ele declara que, em seu julgamento já não somos mais dignos de sermos condenados. Um pecador justificado seria condenado pelo quê? Seu pecado se foi. Há muito tempo, um professor de catecismo me ensinou que ser justificado significa que é “simplesmente como se eu nunca tivesse pecado”. O Catecismo de Heidelberg diz: “Como se eu nunca tivesse tido nem cometido pecado algum“.

O segundo elemento da justificação é Deus declarando à consciência do pecador eleito que ele é justo. Simplificando, ser justo é estar certo aos olhos de Deus, porque a lei de Deus foi perfeitamente cumprida. Deus declara que em Cristo, o pecador temente a Deus tem cumprido a Sua lei (Cf. Rm 5:19). Não importa o que meus olhos veem ou o que os outros dizem que veem em mim. Justiça, significa que Deus declara que o que eu tenho feito é certo. Novamente, o Catecismo de Heidelberg coloca isto muito bem: “Como se pessoalmente eu tivesse cumprido toda a obediência que Cristo cumpriu por mim5. Esta é a realidade desse segundo elemento da justificação que torna a simples definição de justificação (simplesmente como se eu nunca tivesse pecado) simplista, porque não fala de justiça. Justificação significa que Deus declara alguém justo. Esta é uma justiça real. Deus, o juiz perfeito declara o pecador eleito, regenerado e chamado, justo. O pecador justificado é ciente de que ele é digno de ser condenado à condenação eterna, mas Deus, por Sua própria boa vontade, por pura graça, por amor a Cristo, declara que este pecador é perfeitamente justo, e, portanto, digno da amizade íntima com Deus, tanto agora quanto na eternidade no céu. A presente relação com Deus é que o justificado é um filho de Deus, graciosamente adotado em Sua família. E ele é um herdeiro da vida eterna. Os filhos são herdeiros, coerdeiros com Cristo da vida eterna com Deus (Cf. Rm 8:17).

É preciso dizer mais uma coisa sobre a justiça de Deus que é creditada ao justificado. Ela é Deus declarando alguém justo por meio da imputação. Não é Deus fazendo-o justo por meio da infusão ou renovação. Esta última é a santificação, que sempre sucede a justificação. A justiça que é nossa na justificação, é algo que Deus, como o juiz, declara ser nossa legalmente, por meio da imputação. A justiça que Deus dá ao pecador é apenas a justiça de Jesus. Nós não temos nenhuma justiça. E essa justiça não é nada menos do que a justiça de Deus.

Portanto, ninguém será declarado justo diante dele baseando-se na obediência à lei, pois é mediante a lei que nos tornamos plenamente conscientes do pecado. Mas agora se manifestou uma justiça que provém de Deus, independente da lei, da qual testemunham a Lei e os Profetas, justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo para todos os que creem” – Rm 3:20-22.

É a justiça de Deus – a Sua própria justiça. A própria justiça perfeita de Deus é creditada em nossa conta por causa da perfeita obra de Jesus Cristo.

Jesus obteve esta justiça absolutamente perfeita. Ele fez isso por meio de Sua perfeita obediência à lei de Deus e o Seu sofrimento de toda a pena por nossos pecados. Em Sua vida e sofrimento, Jesus foi feito pecado por nós. Ele foi contado entre os pecadores. Nossos pecados foram imputados a Ele, portanto Ele carregou todos os nossos pecados e toda a nossa maldade. Ele veio à semelhança da nossa carne pecaminosa, a fim de suportar a ira de Deus por todos os nossos pecados. Romanos 4:25 declara que Ele foi entregue à morte por causa de, por conta de, nossas ofensas. Sua obra de suportar a ira de Deus foi uma obra perfeita, realizada por causa de uma terna obediência a Deus. Esta obra mereceu o perdão e a justiça. Ele pagou integralmente a nossa dívida e adquiriu para nós uma justiça tão perfeita que Deus teve que ressuscitá-Lo dos mortos. Jesus já não estava mais sob o poder da morte e da sepultura. Toda a nossa maldade e todos os nossos pecados foram perdoados (Cf. 2 Co 5:21; Is 53:1-11)

Mesmo quando Jesus foi entregue à morte por causa de nossos pecados, Ele foi ressuscitado dentre os mortos por causa da nossa justiça. Sua ressurreição é a prova de que Ele pagou integralmente por todos os nossos pecados. Quando vemos o túmulo vazio, então o Espírito nos comunica a verdade do perdão – pleno e gratuito Nossa consciência pode dizer o contrário. Ela pode querer que olhemos para todos os nossos pecados e fixemos nossos olhos no esgoto espiritual da maldade de onde todos os nossos pecados vêm. Isso nos faria duvidar da nossa salvação. Mas o Evangelho aponta para a cruz e para a ressurreição de Jesus Cristo. Seu túmulo está vazio. Ele pagou tudo. Nós somos justificados. Somos justos.

Como a Justificação é Nossa?

Como a justificação é nossa? Como sabemos que somos justos? Como Deus nos comunica isso? Como podemos experimentá-la? Pela fé somente! A fé é o meio ou o instrumento pelo qual Deus imputa ao pecador culpado a justiça de Jesus Cristo. E a fé é o meio ou instrumento pelo qual o pecador culpado sabe e desfruta praticamente a sua inocência e paz com Deus.

O Catecismo de Heidelberg apresenta o tema da justificação depois de tratar sobre o que se deve crer. Ele chega à verdade da justificação com esta pergunta: Mas que proveito você tem em crer em todas as verdades expressas no Credo Apostólico? Sua bela resposta é: “Que eu sou justo em Cristo, perante Deus“. A questão não é se eu sou justo perante outros homens. Eles terão grandes dificuldades para acreditar que eu sou justo. Eles, assim como a minha consciência, veem que eu ainda peco, que eu ainda faço coisas erradas. Mas Deus diz: “Você é justo perante Mim, e você é tão justo que é um herdeiro da vida eterna“.

A fé é o dom de Deus para o pecador regenerado e chamado, pelo qual o pecador é enxertado em Cristo e pelo qual ele abraça e se apropria de Cristo e de todos os Seus benefícios, confiando n’Ele. A fé abraça a declaração do juízo divino. A fé toma posse do perdão em Cristo e da justiça de Cristo.

A fé é o instrumento mais adequado para nos dar o conhecimento de nossa justificação. Isto é assim porque a fé é uma crença e não uma obra. Dizer “” é dizer “não obra“. A fé é o oposto de obras. A fé é um dom de Deus, não de obras, para que ninguém se glorie (Ef 2:8-9). A fé é o vínculo que une uma pessoa a Cristo. Deus objetivamente une todos os eleitos a Cristo na eleição. No momento em que Deus regenera os eleitos, Ele objetivamente nos enxerta, por meio da fé, em Cristo. Este é o poder da fé. Este poder da fé se torna ativo, de modo que aqueles que estão objetivamente enxertados em Cristo, subjetivamente se mantêm n’Ele. Eles O abraçam, ou “permanecem n’Ele“, assim como Jesus disse em João 15. A fé conhece e confia em Cristo, para a justiça. Ela abraça Jesus Cristo como Ele é proclamado no Evangelho. Nós confiamos n’Aquele em quem cremos. Eu sei em quem tenho crido e estou certo de que Ele é capaz de tirar o meu pecado, pagar por ele e adquirir a justiça a qual Ele credita em minha conta. A fé simplesmente crê – permanecendo na verdade que Deus revelou em Sua Palavra.

Então, como sou justo aos olhos do Deus perfeitamente santo? Esta é a pergunta que arde em cada pecador culpado. Esta era a ardente pergunta de Lutero. Se os serafins de Isaías 6 foram obrigados a esconder a si mesmos e seus rostos diante do Deus três vezes santo, então como eu posso comparecer perante Ele? A fé diz:

Eu compareço perante Ele, não com base no que vejo, mas com base no que Deus tem me ensinado em Sua Palavra. A Bíblia me diz que, quando Jesus morreu, Ele morreu pelo pecado. E quando Ele viveu, realizando perfeitamente a vontade do Pai, Ele adquiriu para aqueles a quem Ele representava, uma justiça perfeita. Deus, por amor a Jesus, credita esta justiça em minha conta. Deus me permite comparecer diante d’Ele nesta justiça“.

A fé exclui obras. Repetidas vezes a Escritura declara que a salvação é pela graça somente por meio da fé sem obras de homens.

Portanto, a promessa vem pela fé, para que seja de acordo com a graça“. “Portanto, ninguém será declarado justo diante dele baseando-se na obediência à lei“; “pois todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua graça, por meio da redenção que há em Cristo Jesus” “pois sustentamos que o homem é justificado pela fé, independente da obediência à lei” – Rm 4:16, 3:20, 23-24, 28.

Para aquele que trabalha há uma recompensa, mas não é uma recompensa da graça, é uma recompensa de dívida (Cf. Rm 4:4). “Todavia, àquele que não trabalha, mas confia em Deus que justifica o ímpio, sua fé lhe é creditada como justiça” – Rm 4:5. A fé crê n’Aquele que justifica o ímpio pois “Cristo morreu pelos ímpios“, os quais não têm nenhuma força para fazer algo bom (Rm 5:6). O ímpio não faz nada que mereça algo bom de Deus. E Gálatas 2:16 coloca isso desta maneira:

Sabemos que ninguém é justificado pela prática da lei, mas mediante a fé em Jesus Cristo. Assim, nós também cremos em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pela prática da lei, porque pela prática da lei ninguém será justificado“.

A fé é um dom de Deus, e não uma obra do homem. Há muitos que falam da justificação pela fé, mas eles fazem a fé ser uma obra do homem. Mas a Bíblia e as nossas confissões reformadas condenam tal pensamento.

Por que você diz que é justo somente pela fé? Eu o digo não porque sou agradável a Deus graças ao valor da minha fé, mas porque somente a satisfação por Cristo e a justiça e santidade d’Ele me justificam perante Deus. Somente pela fé posso aceitar e possuir esta justificação6.

A fé não é a justiça, ela é apenas o meio pelo qual Deus concede Sua justiça a Seu povo. A fé não é uma obra do homem, mas um dom de Deus. Portanto, nós nunca podemos pensar que a fé faz alguém digno ou tenha algum mérito perante Deus. Deus assim efetua em nós tanto o querer quanto o realizar de Sua boa vontade (Fp 2:13), de modo que quando acreditamos, ainda assim é uma obra de Deus e não nossa. As obras humanas não têm parte alguma na nossa justificação perante Deus. As boas obras fluem da nossa salvação, mas de nenhuma maneira elas adquirem a salvação ou nos tornam justos perante Deus.

Mas por que as nossas boas obras não podem nos justificar perante Deus, pelo menos em parte? Porque a justiça que pode subsistir perante o juízo de Deus deve ser absolutamente perfeita e completamente conforme a lei de Deus. Entretanto, nesta vida, todas as nossas obras, até as melhores, são imperfeitas e manchadas por pecados7.

Nossas boas obras, então, não têm mérito? Deus não promete recompensá-las, nesta vida e na futura?” Sim, as nossas boas obras recebem uma recompensa, mas “essa recompensa não nos é dada por mérito, mas por graça8.

É tudo graça. As boas obras que fluem da nossa salvação, as quais Deus recompensará, não tem parte alguma na nossa justiça. Quando comparecemos perante Deus, agora e no dia do julgamento, jamais podemos imaginar que é por causa de algo que fizemos. Nós de fato comparecemos diante de Deus em justiça, mas é tudo graça, mediante a fé, sem nenhuma obra humana.

Justamente porque a fé une a Cristo, nós desviamos o olhar de nós mesmos para olhar para Ele. Não podemos adicionar nada à sua obra perfeita. A fé em Cristo declara que tudo é d’Ele e nada de nós. Se nossas obras pudessem acrescentar ou colaborar para nossa salvação, então os nossos pecados a diminuiriam. Nós somos justos perante Deus somente porque Ele graciosamente justifica. Ele faz a imputação e a declaração de julgamento. Nós não temos como adquiri-la e nem perdê-la. Nós somos justificados pela fé sem as obras. Portanto, podemos ter paz com Deus!

Paz com Deus

Pelo fato da justificação ser pela graça somente e por meio da fé somente, há paz com Deus (Cf. Rm 5:1). Não é apenas paz, mas uma maravilhosa paz com Deus. Entre Deus e nós há um consenso fundamental e subsequente boa vontade.

Esta paz não é algo que eu vou ter ou posso ter, mas é algo que eu tenho agora. A presente posse desta abençoada paz é experimentada quando nos lembramos que somos justificados pela fé somente, por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Se apenas considerássemos o nosso pecado, então perderíamos o senso da paz com Deus. O diabo gosta de que estejamos concentrados em nosso pecado. Ele usa a nossa consciência e outras pessoas para apontar nossos pecados e nossa maldade. Ele quer que pensemos que não somos bons o bastante. Ele quer que nos comparemos com os outros, porque isso sempre nos leva a considerar as nossas obras. Ele só quer que desviemos nossos olhos da cruz de Cristo. O diabo gosta de nos conscientizar da culpa de modo que não consigamos encontrar nenhuma saída, mas que continuemos culpados e condenados. Ao contrário do diabo, Deus quer que Seus filhos experimentem a culpa, mas apenas aquela que nos afasta do mérito das obras para nos achegar ao mérito da cruz de Cristo. Pois a culpa de Deus é a porta pela qual temos de passar a fim de nos conscientizarmos da justificação.

Nós somos justificados pela fé, através de nosso Senhor Jesus Cristo. Temos de olhar para Ele, e continuar olhando para Ele. Sua perfeita obra é a única coisa que pode merecer o pleno perdão e a perfeita justiça. A fé na Sua cruz e Sua ressurreição nos assegura da justificação. E este perdão e justiça são tão reais que ninguém pode ou poderá ter alguma acusação contra nós.

Que diremos, pois, diante dessas coisas? Se Deus é por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou a seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não nos dará juntamente com ele, e de graça, todas as coisas? Quem fará alguma acusação contra os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica” – Rm 8:31-33.

Se não somos justificados, então estamos condenados. E o apóstolo continua assim:

Quem os condenará? Foi Cristo Jesus que morreu; e mais, que ressuscitou e está à direita de Deus, e também intercede por nós” – Rm 8:34.

Deus nos faz olhar para a obra de Cristo para nos assegurar da libertação da condenação e da posse da justificação. “Quem os condenará? Foi Cristo Jesus que morreu“. Cristo, nosso representante, morreu por nós. Porém há mais: “Ele ressuscitou“. Lembre-se que nós já aprendemos em Romanos 4:25 que Jesus ressuscitou para nossa justificação. E fica ainda melhor: “Ele está à direita de Deus, e também intercede por nós“. À direita de Deus, Jesus intercede por nós, pedindo as riquezas dos méritos de Sua cruz, para que Deus nos declare justificados. Não há nada que possa nos separar do amor de Deus e da nossa justiça em Cristo. E é por isso que temos paz com Deus!

O perdão e a justiça são nossos, segundo as riquezas da graça de Deus (Cf. Ef 1:7). Não são de acordo com a medida do nosso arrependimento, nem com o exercício da nossa fé. O perdão de Deus é segundo a riqueza da sua graça. Sua graça é o único padrão. A fé sabe que somos filhos de Deus por adoção, possuindo todos os direitos de filhos, incluindo uma herança eterna. E a fé sabe que a nossa justiça nunca pode ser perdida e que somos herdeiros da vida eterna. Estando em Sua graça nós nos gloriamos na esperança da glória de Deus (Cf. Rm 5:2).

Paz com Deus é a capacidade de se alegrar. Regozijamo-nos de que não somos de nós mesmos, mas pertencemos ao nosso fiel Salvador, na vida e na morte. Nós nunca precisamos ser atormentados pelo pensamento de que não correspondemos ou não somos bons o bastante. Ao invés disso, temos confiança em nos aproximarmos de Deus, com nossa consciência livre “do medo, terror e pavor9. A única aceitação que importa é a de Deus, e nós somos “aceitos no Amado” (Ef 1:6). No momento que Deus ama Seu Filho amado, ali podemos saber que somos aceitos por Deus e amados por causa do nome de Jesus.

Portanto, creia no Senhor Jesus Cristo. Isso era tudo o que Paulo tinha a dizer em resposta ao carcereiro de Filipos (Cf. At 16:31). Exercite sua fé dada por Deus para se manter firme em Cristo e em Sua obra perfeita. Permaneça n’Ele. Perceba quão plenamente perdoado e perfeitamente justo você é. Esta é a paz que excede todo o entendimento.

Portanto, oh pecador, vá para casa justificado!


A Justificação e as Boas Obras

Prof. David J. Engelsma

Introdução

Que grande verdade do Evangelho é a justificação pela fé somente! Que presente abençoado de Deus para nós é a justificação pela fé somente. E que abençoada obra do Espírito de Jesus Cristo em nossa consciência é a justificação pela fé somente.

Justificação é o ato estritamente legal de Deus, como juiz, no qual Ele perdoa os pecados de quem crê em Jesus Cristo e o considera justo apenas com base na obediência de Jesus Cristo no lugar deste pecador. É assim que Davi descreve a justificação no Salmo 32:1-2, onde ele proclama quão feliz é o homem a quem Deus atribui a justiça sem as obras:

Como é feliz aquele que tem suas transgressões perdoadas e seus pecados apagados! Como é feliz aquele a quem o Senhor não atribui culpa“.

E é assim que o apóstolo Paulo descreve a justificação em Romanos 4:5, recorrendo a esta passagem nos Salmos:

Todavia, àquele que não trabalha, mas confia em Deus que justifica o ímpio, sua fé lhe é creditada[imputada ou contada] como justiça“.

A única base deste ato de Deus, o juiz, em pronunciar o pecador ímpio – no entanto um pecador crente – justo, é a obediência de Jesus Cristo no lugar do pecador. A base é tanto a obediência de Cristo à lei de Deus, ao longo de Sua vida, quanto a morte de Cristo como sendo a satisfação plena e perfeita da justiça de Deus em relação à culpa do pecador eleito. Paulo escreve em Romanos 5:19 que é pela obediência de um só, isto é, Jesus Cristo, que muitos são “constituídos10 justos, da mesma forma como todos nós fomos constituídos culpados pela “desobediência de um só homem“. A única justiça que é válida no tribunal celestial de Deus, o juiz – o qual é temível em Sua santidade – é a justiça adquirida pelo próprio Deus por meio da obediente vida e morte de Seu próprio Filho encarnado, Jesus Cristo.

Esta justiça, é a própria justiça de Deus, assim como Paulo ensina em Romanos 3:25. Deus declarou Sua justiça especialmente na propiciação da cruz. Em Romanos 10:3, a acusação do apóstolo contra os judeus e contra todos os que de alguma maneira fazem de sua própria obediência, no todo ou em parte, sua justiça perante Deus, é que eles estão “ignorando a justiça que vem de Deus” e “procurando estabelecer a sua própria“. O pecado deles é que eles não se submetem à justiça de Deus.

Esta justiça, que é a própria justiça de Deus e a única justiça que é válida perante Deus de modo a obter o veredicto “inocente” e a deixar as portas da vida eterna abertas para o pecador; esta justiça, eu digo, é concedida ao pecador por meio da fé, e por meio da fé somente. Este é o ensino do apóstolo em Romanos 3:28: “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé somente sem as obras da lei11. A fé em Jesus Cristo é o meio, o instrumento, pelo qual o pecador recebe a justiça por meio da imputação, de modo que sua posição perante Deus, o juiz, é como se ele nunca tivesse pecado, como se ele mesmo tivesse obedecido perfeitamente a lei de Deus e, como se ele mesmo tivesse pago plenamente por todos os seus pecados e merecido a vida eterna. A medida que Romanos 3:28 contrasta fé com “as obras da lei“, o apóstolo de fato ensina que a justificação é pela fé somente.

Quando Martinho Lutero traduziu Romanos 3:28 pela palavra allein em alemão, que é a palavra “somente“, tornando o texto, “o homem é justificado pela fé somente sem as obras da lei“, ele capturou o significado do Espírito Santo e traduziu o texto corretamente. Esta compreensão de Romanos 3:28, Gálatas 2:16 e outros textos, ou seja, que esses textos ensinam que somos justificados pela fé somente, é confessional para todos os reformadas. O Catecismo de Heidelberg, por exemplo, responde à pergunta “Como é que você é justo diante de Deus?” Desta maneira: “Somente pela verdadeira fé em Jesus Cristo12. Que grande verdade do Evangelho é esta. Lutero e toda a Reforma Protestante declararam que a justificação é o coração do Evangelho bíblico. Calvino concordou, chamando a justificação pela fé somente, em suas Institutas:

A principal dobradiça sobre a qual a religião se dependura“.

Como um puro ato da graça de Deus, a justificação pela fé somente glorifica a Deus. A justiça de um pecador, da qual todas as bênçãos e a salvação dependem, é o dom gratuito de Deus. A justiça do pecador perante Deus é a própria justiça de Deus adquirida por Deus na encarnação e na morte expiatória de Seu Filho. Enquanto o ato da justificação, a obediência – que é a base da justificação – e até mesmo a própria fé do pecador – pela qual ele recebe a justiça – são dons gratuitos de Deus pela graça soberana; a justificação aponta para a eleição eterna de Deus em graça como a fonte da justificação, e esta amplia a graça de Deus.

Como um puro ato da graça de Deus, a justificação pela fé somente dá paz ao crente. “Ainda que a minha consciência me acuse de ter transgredido grandemente todos os mandamentos de Deus, e não guardado nenhum deles, e ainda esteja inclinado a todo o mal“, eu estou confiante de que eu sou justo diante de Deus, com base na obediência de Cristo. Este é o testemunho do Catecismo de Heidelberg13. Sem a justificação pela fé somente, se dependêssemos nem que fosse de uma boa obra nossa, “sempre duvidaríamos, sendo levados de um lado para o outro, sem certeza alguma, e nossa pobre consciência estaria sempre aflita14.

Mas agora, aonde ficam as boas obras do crente justificado, nesta verdade da justificação pela fé somente? Existe ainda algum lugar para as boas obras? Este lugar para boas obras é importante, ou mesmo necessário? Ou são as boas obras, e o chamado para realizar boas obras, excluídos, ou talvez minimizados? A pergunta é esta: Qual é a relação entre a justificação pela fé somente e as boas obras?

Isto, meus amigos, aparte de qualquer controvérsia sobre o assunto, é uma questão importante em si mesma. O mesmo Evangelho que exclui as boas obras da justificação, inclui boas obras na nossa salvação por meio do Espírito. O mesmo Evangelho que nos adverte contra trazermos boas obras para justificação, nos adverte contra deixarmos as boas obras fora de nossas vidas.

Somado à urgência de uma correta compreensão da relação entre a justificação e as boas obras, está o ataque contra a justificação pela fé somente por determinados inimigos desta verdade. Este ataque contra a justificação pela fé somente é motivado, supostamente, em nome das boas obras. A urgência é agravada hoje dentro da comunidade de igrejas reformadas, por causa de um ataque à justificação pela fé somente, em nome de uma ênfase em boas obras vinda de dentro das próprias igrejas reformadas. Na verdade, este ataque à justificação pela fé somente está sendo provocado por proeminentes e influentes teólogos reformados, professores de seminários e ministros do Evangelho. Estes homens são porta-vozes de um movimento conhecido como “Visão Federal“, que é, literalmente, “Visão Pactual“, porque é o desenvolvimento de uma determinada doutrina do pacto. Intrínseco a esta doutrina do pacto está um ataque à justificação pela fé somente. Este ataque é defendido como uma promoção das boas obras na vida do cristão.

Este ataque contra a justificação pela fé somente é encontrado hoje na Orthodox Presbyterian Church15, na Presbyterian Church in America16, nas United Reformed Churches17 e nas Orthodox Christian Reformed Churches18. O ataque à justificação pela fé somente não é apenas encontrado nessas igrejas, mas também é tolerado por elas. E não é apenas tolerado por essas igrejas, mas no caso de pelo menos três delas, o ataque à justificação pela fé somente tem sido encorajado pelas principais assembleias – pelos consistórios, presbitérios e sínodos.

O Ataque à Justificação em Nome das Boas Obras

O principal ataque à verdade do Evangelho da justificação pela fé somente por seus inimigos de todos os tempos, é o argumento de que a justificação pela fé somente enfraquece, se não destrói por completo, o zelo por uma vida santa de boas obras.

De começo, devemos reconhecer a aparente validade dessa acusação. A justificação pela fé somente afirma que as obras do pecador que é justificado, não tem parte alguma na justificação do pecador. Nem todas as boas obras que ele possa fazer um dia, e nenhuma das obras pecaminosas que ele já tenha feito – nem que aquela obra pecaminosa não seja tão grave – têm parte na sua justificação por Deus. Com base nesta doutrina, a mente carnal, o pensamento carnal, o homem natural diz: “Isso inevitavelmente resulta em uma vida negligente por parte daqueles que adotam esta doutrina“.

Até o presente momento, surgiram três notáveis defensores ​​das boas obras, como eles gostam que acreditemos, que se opõem a justificação pela fé somente porque a doutrina é prejudicial às boas obras.

O primeiro destes inimigos da justificação pela fé somente é a Igreja Católica Romana. Na Reforma, e posteriormente, Roma condenou a verdade da justificação pela fé somente como sendo a destruidora do zelo por uma vida de santidade. É a essa acusação de Roma que o Catecismo de Heidelberg respondeu:

Esse ensinamento [isto é, a doutrina da justificação pela fé somente] não torna as pessoas negligentes e ímpias?19

Eu não levo a sério a preocupação fingida de Roma por uma vida de santidade e por boas obras. Nem ninguém deveria levar a sério a preocupação fingida de Roma por boas obras. Quando Roma coloca a máscara de piedade e mostra preocupação de que os reformados protestantes têm falta de santidade, eu dou gargalhadas. É uma piada que tal igreja sórdida no tempo da Reforma, tenha criticado o protestantismo por impiedade. É ridículo que tal igreja com sodomia e homossexualidade generalizada, a qual encobria a iniquidade dos níveis mais altos, até que a imprensa secular denunciou suas perversões, tenha censurado os cristãos reformados por negligência. É pura hipocrisia que tal igreja que aceita Ted Kennedy e a maior parte da máfia como membros de boa reputação, e que dará a esses homens refinadas missas de funeral quando morrerem e perecerem eternamente, tenha sequer dado um pio sobre a justificação e as boas obras. No entanto, nós estamos interessados ​​nas acusações de Roma, porque elas são as mesmas acusações que também têm sido levantadas por outros inimigos da justificação pela fé somente. De fato, as acusações de Roma são as mesmas que foram levantadas contra o próprio apóstolo Paulo enquanto ele proclamava a doutrina da justificação na epístola aos Romanos.

O segundo notável ataque à justificação, o qual supostamente ocorre porque a doutrina é prejudicial à santidade de vida e boas obras, vem dos arminianos. Isso não é tão popular entre nós, porque nós nos concentramos na negação deles da eleição, expiação eficaz aos eleitos somente, graça soberana e a perseverança dos santos. Mas os arminianos negam a justificação pela fé somente também. E eles a negam, de acordo com eles, porque veem esta como prejudicial à responsabilidade humana e a vida de santidade. Os Cânones de Dort falam deste aspecto da heresia arminiana e condenam o erro que “considera a fé e a obediência da fé, ainda que imperfeitas, como a perfeita obediência à lei e que a considera digna da recompensa da vida eterna por meio da graça20. John Wesley era um verdadeiro filho de Jacó Armínio e Simon Episcopius em sua negação da justificação pela fé somente, como sendo destrutiva à ideia de John Wesley de santidade.

O terceiro eminente ataque à justificação pela fé somente tem vindo, nos últimos trinta anos ou mais, de dentro das próprias igrejas reformadas, de fato, de dentro de igrejas reformadas e presbiterianas que são amplamente famosas por serem as igrejas presbiterianas e reformadas mais conservadoras. Refiro-me ao movimento que promove uma teologia conhecida como “Visão Federal“, um movimento que é influenciado por um entendimento sobre Paulo, especialmente em Romanos e Gálatas, que difere do entendimento que Lutero tinha sobre Paulo, que Calvino tinha, que toda a tradição reformada tem tido, especialmente, que as confissões reformadas têm. Essa é chamada “A Nova Perspectiva Sobre Paulo“. Pelo fato dessa negação da justificação pela fé somente ter surgido, e estar sendo nutrida no seio das igrejas reformadas supostamente conservadoras, e pelo fato dela se basear em uma popular, na verdade a predominante, doutrina do pacto, este ataque à justificação pela fé somente é o mais perigoso ataque aos cristãos reformados professos de hoje. Na verdade, eu considero esta heresia como a mais grave ameaça à fé reformada desde o Sínodo de Dort.

O ataque à justificação pela fé somente em nome das boas obras, como eles dizem, sempre tem o mesmo formato, e sempre usa os mesmos argumentos. Se ele está saindo da boca de um teólogo católico romano, da boca de um teólogo arminiano, ou da boca de um porta-voz das igrejas reformadas conservadoras a favor da “Visão Federal“, o argumento é sempre o mesmo.

O argumento fundamental contra a justificação pela fé somente é este: o crente somente será motivado a ser zeloso pelas boas obras se ele supor que a sua justificação depende dessas boas obras, ou é obtida por meio dessas boas obras, ou se ele for impulsionado pela terrível condenação que suas boas obras o tornarão digno de ser justificado por Deus. Este é o argumento fundamental. A única motivação para o zelo em fazer boas obras é a suposição de que as boas obras são a base ou o fundamento da justiça, que essas boas obras são a condição para a salvação, que essas boas obras fazem de alguém digno da vida eterna. Se este argumento é errado – e o Evangelho da Escritura diz que ele é absolutamente errado -, todo o argumento contra a justificação pela fé somente entra em colapso.

Ligado a este argumento fundamental estão vários outros constantes argumentos contra a justificação pela fé somente. Por exemplo, o argumento segue que quando Paulo ensina a justificação pela fé somente sem as obras da lei, ou aparte da lei, ele está excluindo apenas certos tipos de obras, as obras-cerimoniais como a circuncisão, obras que são realizadas com o objetivo de merecimento, ou obras que são realizadas por pessoas não regeneradas. De acordo com aqueles que levantam esse argumento, Paulo não pretendia excluir da justificação as verdadeiras boas obras, as obras realizadas pelo cristão por amor a Deus.

Outro argumento segue-se desta maneira. Quando Deus promete – como de fato promete – nos dar um galardão por nossas boas obras, o significado é que nossas boas obras adquirem a salvação, nos tornam dignos da salvação, ou são a base da nossa salvação em parte, de modo que a nossa justificação é pelo menos em parte através das boas obras, e não somente pela fé.

Em seguida há esse argumento. Quando a Bíblia ensina em 2 Coríntios 5:10, e em outras passagens, que o nosso julgamento final ocorrerá “de acordo com” as nossas obras, isso significa que o juízo final, que decide o nosso destino eterno, será baseado, em parte, nas obras que realizamos. E pelo fato do julgamento final ser apenas a versão pública da justificação que vivemos hoje, uma vez que o julgamento final será baseado em nossas obras, logo a nossa justificação hoje também é baseada em nossa própria experiência, a justificação é baseada em obras.

De especial interesse para nós, é o argumento contra a justificação pela fé somente vindo dos homens da “Visão Federal“. Seu argumento contra a justificação pela fé somente é um argumento a partir de uma certa doutrina do pacto. É o argumento de que, uma vez que o pacto de Deus com o Seu povo é condicional, ou seja, um pacto que depende da própria obediência e fé da criança batizada, também a justificação no pacto é condicional. Ou seja, a justificação de Deus das crianças batizadas depende do ato da criança de crer, e da obediência da criança a Deus, ao longo de sua vida, dentro do pacto.

Ora, isso não é completamente novo, uma vez que a noção de um pacto condicional e uma salvação condicional dentro do pacto tem sido encontrada e defendida por igrejas reformadas por um longo tempo. Esta é a doutrina contra a qual as Protestant Reformed Churches lutaram arduamente no final de 1940 e início de 1950. É essa doutrina do pacto que agora está sendo desenvolvida numa completa negação da justificação pela fé somente, e com esta verdade central do Evangelho, uma negação de todos os chamados “cinco pontos do calvinismo“. O que é novo é que a doutrina de um pacto condicional seja agora aplicada à verdade da justificação com o resultado de que os homens corajosamente negam a justificação pela fé somente.

Eu demonstrei que a negação da “Visão Federal” à justificação pela fé somente é o desenvolvimento da doutrina de um pacto condicional em meu livro, The Covenant of God and the Children of Believers21.

O ponto de vista sobre a justificação defendida por todos aqueles que atacam a justificação pela fé somente é este: a justificação não é um ato estritamente jurídico de Deus, mas também uma obra de renovação e santificação, na verdade, uma obra para fazer o pecador bom. A justificação, neste caso, não depende inteiramente da obediência de Cristo por nós e fora de nós, mas isso também depende, em parte, de nós mesmos, de nossa própria obediência e de nossas próprias boas obras. E, por esse ponto de vista, a justificação não consiste apenas da obediência e da justiça de Jesus Cristo, a perfeita justiça de Cristo estabelecida por meio de Sua vida de obediência e Sua morte expiatória em nosso lugar, mas sim, a justiça que é legalmente declarada por Deus na justificação é também, em parte, a nossa própria – a nossa própria justiça imperfeita, estabelecida por nossas próprias boas obras imperfeitas.

Qual é a resposta da fé reformada ortodoxa a este ataque à justificação pela fé somente em nome das boas obras, seja pela Igreja Católica Romana, pelos arminianos22, ou pelos defensores de um pacto condicional?

Primeiramente, nós respondemos que o próprio ataque contra nós e nossa doutrina da justificação confirma que estamos defendendo a mesma verdade do Evangelho da justificação que o apóstolo Paulo defendeu e confessou, especialmente em Romanos e Gálatas. O ensinamento de Paulo sobre a justificação atraiu o mesmo ataque, exatamente o mesmo ataque. “Paulo” acusou seus oponentes: “vocês anulam a lei pela fé” (Rm 3:31). “Paulo“, eles exclamaram: “você está pregando que podemos e que vamos continuar no pecado, para que a graça aumente” (Rm 6:1). Falando por mim e pelas Protestant Reformed Churches23, nós nos regozijamos de que a nossa confissão sobre a justificação ainda esteja atraindo esse ataque. Se a nossa confissão sobre a justificação não atraísse esse ataque, eu ficaria preocupado de que houvesse algo errado com a nossa doutrina da justificação. A confissão e a pregação de pouquíssimas igrejas reformadas hoje sobre a justificação, atraem este ataque. Pouquíssimas igrejas reformadas estão tão clara e nitidamente pregando e confessando a justificação pela fé somente e a salvação pela gratuita, soberana e incondicional graça, de modo que os adversários os acusam de ensinar uma doutrina que resulta em uma vida negligente.

Em segundo lugar, a nossa resposta a este ataque é a do próprio Paulo: “De maneira nenhuma!“. Nós não denegrimos uma vida de boas obras em obediência à lei de Deus. Pelo contrário, por meio do ensino da justificação pela fé somente estabelecemos uma vida de zelo pelas boas obras.

Em terceiro lugar, nós não respondemos a esses ataques comprometendo a doutrina da justificação pela fé somente – nem sequer um pouquinho. Mas defendemos a doutrina contra estes ataques. A justificação é pela fé somente. Todas as nossas obras são excluídas, incluindo as nossas verdadeiras boas obras, as obras que fazemos no poder do Espírito de Cristo. A única base da nossa justiça para com Deus é a obediência de Cristo, e não a nossa própria obediência, seja ela qual for. A única obra que é a nossa justiça diante de Deus é a obra realizada para nós por outro, Jesus Cristo.

No que diz respeito aos argumentos específicos que são levantados contra a justificação pela fé somente, nós respondemos que, quando Paulo exclui as obras da lei, e a lei da justificação, ele está falando de todas as nossas obras. Gálatas 3:10-12 prova isso, pois nessas passagens da lei, sobre a qual ele diz no verso 11, que não tem lugar na justificação do pecador, obviamente, refere-se a toda a lei de Deus, incluindo os dez mandamentos. No versículo 10, Paulo cita Deuteronômio 27:26: “Maldito quem não puser em prática as palavras desta lei“. “As palavras da lei” incluem todos os mandamentos, e não apenas os mandamentos cerimoniais. Portanto, quando o apóstolo nega, no verso 11, que ninguém é justificado “pela lei“, ele esta falando de toda a lei.

Quanto à recompensa prometida, nós respondemos que a Bíblia realmente nos promete uma recompensa por nossas boas obras. Mas esta recompensa é uma recompensa da graça, não uma recompensa que adquirimos, nem uma recompensa que merecemos, e nem um salário que Deus nos dá pelo nosso trabalho. A recompensa é da graça, porque Deus, em Sua graça eternamente ordenou as boas obras para que as praticássemos (Cf. Ef 2:10). A recompensa é da graça, porque por meio de Sua morte, Jesus Cristo adquiriu para nós o direito de realizarmos boas obras (Cf. Tt 2:14). É um privilégio fazer boas obras a serviço de Deus. A recompensa é a recompensa da graça, porque o próprio Espírito de Cristo realiza essas obras em nós e através de nós (Cf. Fp 2:13). A recompensa é uma recompensa da graça, porque quando Deus aceita nossas obras, Ele primeiro justifica, ou absolve, todas as boas obras quanto à corrupção e pecado que mancha cada uma delas. E a recompensa é uma recompensa da graça, porque quando Deus nos dá a recompensa, que é a vida eterna e o lugar que temos em glória, Ele o faz, não porque Ele deva isso a nós, mas em livre favor24.

No que diz respeito ao argumento contra a justificação gratuita que apela para o julgamento final e para o fato de que seremos julgados segundo as nossas obras, é certamente verdade que o nosso julgamento no último dia do mundo, será a justificação daqueles que creem em Jesus Cristo. Esta será uma justificação pública. Hoje, quando eu creio em Jesus Cristo, eu sou justificado em particular. Eu e Deus sabemos que eu sou justificado pela fé em Cristo. Mas chegará um dia em que eu estarei diante de Deus, o juiz, na presença de todo o mundo, eleitos e réprobos, demônios e anjos, e então Deus tornará público a justificação que agora é privada. Esta justificação no juízo final será um ato estritamente legal de Deus. Isso não vai ocorrer, nem a Escritura nunca o disse, por causa das nossas obras, ou com base nas nossas obras. Mas isso acontecerá de acordo com nossas obras como uma espécie de critério. Nesse julgamento final, a base única para a nossa justificação será o que é hoje, ou seja, a obediência de Jesus Cristo em nosso lugar. Graças a Deus por isso! Se isso não fosse verdade, nós não teríamos nenhuma esperança. Mas, naquele dia, as boas obras que realizamos com a graça de Deus serão exibidas por Deus, absolvidas de toda a corrupção que as contaminaram, de modo que essas obras apresentarão e demonstrarão a realidade do gracioso julgamento e salvação de Deus a nós para o Seu louvor.

Ao ataque à justificação que surge da doutrina de um pacto condicional, nós replicamos, primeiro, que com base em um pacto condicional, a negação da justificação pela fé somente e de todas as doutrinas da graça, se seguem. Se o pacto é condicional, a justificação é pela fé e obras. E se o pacto é condicional, logo a eleição é condicional, a expiação condicional, a salvação do pecador condicional, e a vida eterna condicional.

Segundo, a nossa resposta é que o próprio fato de um pacto condicional implicar em justificação por fé e obras, prova que a doutrina de um pacto condicional é uma falsa doutrina. Isto é a introdução, nas igrejas reformadas, de um Evangelho de salvação por meio da própria vontade e obra do homem.

Terceiro, a nossa resposta é que o pacto é incondicional. Deus promete e cumpre o pacto para com Jesus Cristo e todos os eleitos em Cristo por mera graça, assim como Gálatas 3:16 e Gálatas 3:29 ensinam. Gálatas 3:16 ensina que a promessa do pacto à semente de Abraão era uma promessa a Cristo, que é a semente de Abraão. A promessa do pacto nunca foi direcionada a toda a descendência física de Abraão. De acordo com Gálatas 3:29, aqueles, e somente aqueles, que pertencem a Cristo por divina eleição são incluídos na semente de Abraão e são objetos da promessa. Hoje toda a igreja reformada e presbiteriana conservadora mundial é advertida por Deus, através da teologia da “Visão Federal“, que a doutrina de um pacto condicional é a rejeição do Evangelho da salvação pela graça. E toda a igreja reformada mundial está sendo testada com relação à confissão fundamental das igrejas reformadas ao longo das eras, que a salvação é pela graça somente.

Quarto, nossa resposta ao ataque à justificação pela fé somente é que de nossa parte acusamos aqueles que ensinam a justificação pela fé e obras de estarem destruindo a paz e a certeza da salvação dos filhos de Deus, de estarem roubando de Deus Sua glória, e serem, assim como Calvino acusa todos os que ensinam a justificação pela fé e obras, fariseus. Todo aquele que ensina e crê na justificação por obras, de qualquer forma, é um fariseu. De acordo com o nosso Senhor, em Lucas 18:14, os fariseus não são justificados. Como pode alguém ser justificado se ele depender de suas próprias obras contaminadas pelo pecado e ousar – como Robert Trail colocou – fazer a sua lamentável santidade sentar-se ao trono do juízo, juntamente com o precioso sangue do Cordeiro de Deus?

A Verdade de Tiago 2

Eu tenho, até o momento, ignorado deliberadamente o principal argumento sempre usado a favor da justificação por fé e obras, e contra a justificação pela fé somente. Este é um argumento bíblico. É o apelo a Tiago 2:14-26. Quero agora considerar o ataque à justificação pela fé somente constituído por um apelo a Tiago 2, e ligado a este apelo, a verdade de Tiago 2 sobre a justificação.

O apelo é que Tiago 2, ensina que tanto Abraão, ao oferecer Isaque por ordem de Deus, e Raabe, em receber e guardar os espiões israelitas, foram justificados por obras (v. 21, 25). Tiago 2 ensina que a partir desses eventos importantes na história do Antigo Testamento, esclarecidos como justificação por obras, vemos “que é pelas obras que o homem é justificado, e não somente pela fé” (v. 24). Aparentemente, Tiago 2 ensina que a justificação é pelas obras, e não somente pela fé. E, aparentemente, no capítulo 2, Tiago ensina uma doutrina que é claramente contrária ao ensino do apóstolo Paulo, que, em Romanos 3 e 4, em Gálatas 2 e em outras passagens, ensina que a justificação não é por obras, mas pela fé somente.

Não é de estranhar que os inimigos da justificação pela fé somente deem tanta ênfase a Tiago 2.Tiago 2 é a passagem decisiva para todos eles. Roma citou Tiago 2 para Martinho Lutero sem parar, até que em um ponto, em desespero, o reformador repudiou Tiago como uma “epístola de palha” (acusação a qual ele não manteve). Da mesma forma, os defensores contemporâneos da justificação por obras, das igrejas reformadas, se agarram em Tiago 2. Isso por si só é altamente significativo. Esses defensores da justificação por obras das igrejas reformadas se alinham à Roma contra o Evangelho da Reforma.

A explicação de Tiago 2 dada pelos inimigos da justificação pela fé somente é a seguinte: Tiago ensina a justificação, como sendo um ato de Deus pelo qual o pecador se torna justo, é de fato por meio das boas obras do pecador, de modo que a justiça do pecador é, em parte, sua própria obediência à lei de Deus. De acordo com os defensores da justificação pela fé e obras, Deus leva em conta as obras do pecador no ato da justificação. Tiago deve ser harmonizado com Paulo, desta forma, apesar dos dois estarem falando de justificação no mesmo sentido, eles têm diferentes obras em vista. As obras que Paulo exclui da justificação em Romanos 3:28 são apenas as obras cerimoniais e as obras que são feitas para merecer a salvação. Por outro lado, dizem eles, as obras queTiago tem em vista são as verdadeiras boas obras que procedem da fé.

Esta era a explicação de Tiago 2 que Roma sempre deu. Esta é a explicação de Tiago 2, que os defensores da “Visão Federal” agora estão dando. Nossa justiça perante Deus é, em parte, a obediência de Cristo e em parte a nossa. Nossa justificação, hoje e no dia do julgamento, depende em parte da obra de Cristo por nós e em parte das nossas próprias boas obras. No ato justificador de Deus, pelo qual nos tornamos justos, nossas próprias obras estão inseridas. Seus olhos santos as veem, não como pecados a serem perdoados, mas como atos que tem de ser aceitáveis a Deus, para fazer-nos dignos da vida eterna. E nós vamos ao julgamento, agora e no último dia do mundo, com as nossas boas obras em mãos, advogando essas obras como atos dos quais nosso destino eterno depende.

Não é isso demasiadamente terrível de se contemplar? Eu e você enfrentaremos o julgamento final desta maneira? Devo morrer com esse terrível pensamento em minha alma: o meu destino eterno jaz naquilo que fiz, em mim mesmo? Não é este um enorme insulto – o insulto de uma incredulidade hipócrita – à perfeita justiça que Deus adquiriu em Cristo?

Este não é o ensino de Tiago 2.

Em primeiro lugar, o que quer que Tiago ensine no capítulo 2, está em harmonia com o que Paulo ensina, porque o Espírito não pode Se contradizer na Bíblia. Paulo está ensinando sobre a justificação quanto ao ato de Deus de nos absolver da culpa contando-nos justos. Isto é claro na linguagem de Paulo em Romanos 3 e 4: “imputa“; “perdoa“; “àquele que não trabalha, mas confia em Deus que justifica o ímpio” nosso pai Abraão não foi “justificado pelas obras” (Romanos 4 :1-8).

Em segundo lugar, Tiago está falando da justificação em um sentido diferente de Paulo. Tiago está falando da prova e demonstração do crente de sua gratuita justificação pela fé somente. O homem que foi justificado pela fé somente, mostrará esta justificação. Ele a mostrará a outros homens. Ele provará esta justificação a si mesmo. E ele mostrará esta justificação a Deus, seu juiz. Ele mostrará sua justificação pelas boas obras que são sempre o fruto da justificação.

Esta sempre foi a explicação dos pais reformados sobre Tiago 2. Em seu comentário sobre Tiago 2:14-26, João Calvino escreveu que a justificação pelas obras em Tiago 2 está falando da “prova [que Abraão] deu a sua justificação“. A justificação pelas obras em Tiago 2 significa “que a justiça é conhecida e provada por seus frutos“.

A própria passagem mostra que este é o verdadeiro significado de Tiago. Tiago está argumentando contra os membros da igreja que, apesar de professarem a fé, na verdade têm uma fé “morta“, uma fé que não produz nenhuma boa obra, mas se contenta em viver impenitentemente no pecado. Tiago desafia esse tipo de membro da igreja: “Mostre-me a sua fé sem obras“, e acrescenta: “e eu lhe mostrarei a minha fé pelas obras” (v. 18).

O próprio Tiago chama a atenção para o fato de que Abraão foi justificado pelo ato legal de Deus de perdoar os pecados, e imputar a justiça pela fé, muito antes de Abraão ter oferecido seu filho Isaque na montanha. Bem no meio de sua doutrina da justificação, Tiago cita Gênesis 15:6:

Cumpriu-se assim a Escritura que diz: Abraão creu em Deus, e isso lhe foi creditado como justiça.

Isso aconteceu muitos anos antes de Isaque nascer. Abraão creu na promessa de Deus. E a fé de Abraão, aparte de qualquer obra, incluindo o sacrifício de Isaque, foi imputada a Abraão como justiça.

Tiago está ensinando exatamente o que Jesus havia ensinado em Lucas 7:47 sobre a mulher pecadora que O amava porque Ele tinha perdoado todos os seus pecados, e que havia ungido os pés d’Ele com o óleo precioso: “Os muitos pecados dela lhe foram perdoados, pelo que ela amou muito“. Ele não quis dizer que seu amor fora a base de seu perdão. Mas Ele quis dizer que o amor dela era a prova e a evidência do perdão dos seus muitos pecados. A segunda parte de Lucas 7:47 expõe, sem margem de dúvida, que isto era o que Jesus quis dizer: “Mas aquele a quem pouco foi perdoado, pouco ama“.

Este é o ensinamento de Tiago 2. As boas obras, que não têm parte alguma no ato do pecador ser considerado justo perante Deus – pois isso é somente pela fé -, são o inevitável fruto e demonstração da justificação. Através das boas obras de terna gratidão Àquele que graciosamente perdoou seus pecados, Abraão, Raabe, e todo verdadeiro crente é justificado demonstrativamente.

Portanto, Tiago 2 é uma passagem importante, para nos ensinar a correta relação entre a justificação pela fé somente e uma vida de boas obras.

A Relação entre Justificação e Obras

As boas obras, de fato, uma vida toda consistente com boas obras – boas obras na vida pessoal, boas obras na escola, boas obras no namoro, boas obras no casamento, boas obras na casa e na família, boas obras no trabalho, boas obras na igreja, boas obras em meio e contra os ímpios, uma cultura depravada e uma sociedade em que temos o privilégio de brilhar como a luz na escuridão – ou seja, as boas obras são frutos da justificação pela fé somente. Elas são frutos e evidências de nossa justificação pela fé somente. Nossas boas obras não são a condição para a justificação, nem a base para justificação, nem o conteúdo da justificação, mas seus frutos.

As boas obras são os frutos da justificação de duas maneiras.

Primeiro, a fé pela qual somos justificados é uma fé viva e verdadeira. Sendo uma fé viva e verdadeira, ela nos une ao ressurreto e vivo Jesus Cristo, a fim de que por meio da fé nós também possamos receber a graça purificadora e fortalecedora de Cristo, para viver uma vida piedosa. Quem Ele justifica, Ele também santifica. Embora nós sejamos justificados pela fé sem obras, a fé que justifica nunca fica sem suas obras.

Segundo, as boas obras são frutos da justificação desta forma: o pecador perdoado, livre da culpa e vergonha do pecado, e, portanto, livre da morte e do inferno, e para quem agora o céu está aberto, e sobre quem a alegre face de Deus agora brilha, adorará o seu gracioso Salvador. E este amor grato por Deus é o motivo de uma vida de boas obras. Oh, ele é um forte motivo para o zelo por boas obras. Este foi o ensinamento de Jesus sobre a relação entre a justificação e as boas obras na parábola dos dois devedores em Lucas 7:42: “Nenhum dos dois tinha com que lhe pagar, por isso perdoou a dívida a ambos. Qual deles o amará mais?“. Se somos perdoados, amaremos. E se somos perdoados muito, amaremos muito. Sem o amor por Deus por uma justificação graciosa, nem sequer uma boa obra é possível. Devemos ouvi-Lo dizer à nossa alma: “Meu filho, minha filha, adotado na cruz, eu livremente perdoo todos os seus pecados. Eu concedo a ti a justiça de Meu Filho“. Então seremos zelosos por boas obras – não podemos fazer nada mais, senão, ser zelosos por boas obras.

O fato é que – e que os defensores da justificação pelas obras ouçam – cada obra que é feita a partir da motivação de ganhar, da motivação de reembolso, da motivação de cumprir uma condição, da motivação de se tornar digno, da motivação de fundamentar nossa salvação, a fim de fazer uma promessa universal graciosa eficaz para si mesmo, cada tipo de obra como esta é má, é pecado. O amor trabalha na única maneira agradável a Deus. E o amor confessa a verdade da salvação pela graça somente. O amor obedece à lei. O amor presta atenção aos preceitos e segue o exemplo de Jesus no Evangelho.

O pregador não tem razão para temer que, se ele pregar a justificação pela fé somente, a doutrina produzirá negligência em sua congregação.

Isso não quer dizer que não haverá aqueles que abusam da doutrina, mostrando-se negligentes em suas vidas. O fato de alguns fazerem isso explica a presença deTiago 2 na Bíblia.

Não pode ser esquecido que Tiago 2 é um aviso necessário sobre justificação e boas obras. Havia na igreja daquele momento, aqueles que estavam confessando em alta voz a salvação graciosa, mas não estavam conseguindo viver em boas obras, sobretudo estavam tratando com crueldade os membros da igreja. Ainda há tais pessoas dentro da igreja. Eu mesmo já argumentei contra essas pessoas, e esses foram alguns dos conflitos mais ferozes de todo o meu ministério. Oh, como eles falavam da graça soberana. Mas então, em suas vidas não mostravam nenhum fruto de boas obras. O pregador e a assembleia devem admoestá-los em uma linguagem forte:

Você faz uma confissão ortodoxa, enquanto vive perversamente? Satanás também o faz. Você não sabe, oh homem fútil, que a fé sem obras é morta?

Por meio desta própria advertência, escrita nas páginas da inspirada Escritura, que vem a todos nós, nós que temos uma fé viva somos despertados mais ainda a uma vida de boas obras, a fim de mostrar a nossa fé. Isto glorifica a Deus, que salva, não só do castigo do pecado, mas também da poluição e escravidão do pecado. E Ele salva da poluição e poder do pecado, da mesma forma que Ele salva da culpa do pecado: por meio do Evangelho da graça, não pela lei.


A Justificação e o Cristão

Rev. William Langerak

Introdução

Ainda falta ser falado sobre um assunto nesta oportuna e enriquecedora conferência sobre o tema: “A Justificação pela Fé Somente“. Os oradores que me antecederam explicaram cuidadosamente a verdade sobre o tema. E pelo fato de quase todos os ataques contra este terem, através dos tempos, tomado o mesmo formato, ou seja, introduzido as obras do pecador como base para a nossa justificação, estes oradores fizeram cuidadosamente a distinção entre justificação e santificação, mostrando a relação necessária entre elas, e demonstrando que a justificação ocorre tanto objetiva como subjetivamente, sem nenhuma conexão com as nossas obras, sejam elas boas ou más, em corpo ou alma, da carne ou do espírito regenerado. Foi demonstrado que, quando se trata de justificação, as nossas obras simplesmente não têm lugar algum. O que foi ensinado é a verdade da justificação como geralmente tem sido compreendida pela igreja por cerca de 2000 anos, mas especialmente desenvolvida, formulada e ensinada pela igreja da Reforma contra os erros perniciosos de Roma e dos arminianos. A única coisa que falta nesta conferência é explicar o significado dessa verdade para a vida cotidiana do cristão.

O significado geral desta verdade já foi observado. O tema desta conferência usa a amável descrição dada pela igreja no passado, “O Coração do Evangelho“. Os oradores prévios observaram que Lutero chamou a justificação de:

O artigo sobre o qual a igreja permanece ou cai

E Calvino:

A principal dobradiça sobre a qual religião se dependura“.

Podemos acrescentar que o significado geral da justificação também é indicado pela profundidade do tratamento que recebeu por esses teólogos. Por exemplo, no livro três das Institutas, Calvino dedica nove dos vinte e cinco capítulos para a justificação, esta em comparação com um capítulo de cada sobre fé e regeneração, e três sobre a predestinação – muito para o convencional. Ele também dedica oito capítulos para a santificação, se opondo a toda calúnia, reduzindo assim a acusação de que os reformados não têm lugar para boas obras. O significado geral da justificação também ficou claro no texto que lemos, onde a Escritura não só defende essa verdade, mas chama aqueles que tentam destruí-la de “cães” e “mal-trabalhadores“.

O propósito deste discurso, no entanto, é demonstrar a partir da Escritura, das confissões e dos escritores reformados, os específicos benefícios práticos que a verdade da justificação dá ao crente, e ao mesmo tempo demonstrar o que é perdido quando qualquer outra noção sobre a justificação é acolhida. Além disso, é a minha intenção concentrar nos aspectos da justificação que se aplicam a nossa atual vida terrena, uma vez que os oradores anteriores já mencionaram a importância da justificação para nossa vida eterna e glória.

É importante demonstrar o significado prático dessa verdade para a nossa vida terrena atual por duas razões:

Primeiro, para que os crentes sejam incentivados a batalhar com grande zelo e sacrifício pessoal por esta verdade e contra o erro. Mesmo agora, líderes reformados e presbiterianos supostamente conservadores audaciosamente afirmam que esta verdade desenvolvida, formulada e ensinada pela igreja da Reforma, é deformada, ilegítima e doentia. Na opinião deles, milhares de crentes ofereceram suas costas ao chicote, sua língua à faca, sua boca à mordaça e seu corpo ao fogo, não por causa da verdade da Palavra de Deus, mas por um colossal erro teológico cometido pelos nossos pais reformados. Este mais recente ataque, que tem por nome “Visão Federal“, faz mais do que menosprezar o alto preço que cristãos reformados do passado pagaram para manter esta verdade, ela é desprezível por si só. No entanto, ao assaltarem a verdade bíblica da justificação, a qual é de fato o coração do Evangelho, seus defensores roubam do crente os benefícios práticos e salvíficos da justificação, e de Deus a Sua glória. Portanto, os crentes precisam conhecer esses benefícios da justificação para a sua vida cotidiana, de modo que, pessoalmente, eles sejam movidos a mantê-la, mesmo com grande sacrifício pessoal.

Segundo, os benefícios práticos da verdade da justificação precisam ser demonstrados a fim de que os crentes se beneficiem deles. Existe o perigo de que nós simplesmente vejamos a justificação como uma ideia teológica abstrata e a batalha contra isso como uma briga de família sobre semântica. O fato é que se a justificação for incompreendida, rejeitada ou eliminada, simplesmente não haverá nenhum proveito dos ricos benefícios que ela proporciona, somente miséria.

A Justificação Estabelece a Justiça de Deuse
Nossa Relação Legal com Todas as Coisas

Para entender o significado da justificação pela fé somente para a vida cotidiana do cristão, primeiro é necessário saber o que a diferencia de todos os outros aspectos da salvação. O que é que faz da justificação o coração do Evangelho, a principal dobradiça sobre a qual a religião se dependura e o artigo sobre o qual a igreja permanece ou cai? Se você achasse que a razão é porque a justificação revela com mais clareza a soberana graça, misericórdia e arbítrio de Deus na salvação a parte da vontade, dignidade e obras dos homens, você estaria enganado. É verdade que a doutrina da justificação revela claramente estas coisas, mas não exclusivamente, ou mesmo primariamente. O amor de Deus na eleição, a regeneração vivificadora, a santificação transformadora, e de fato, todas as partes da salvação igualmente revelam que Deus salva a parte da vontade, dignidade ou obras dos pecadores. Poderia até ser argumentado que a eleição revela mais claramente a prerrogativa divina na salvação, que a santificação revela mais claramente o poder divino na salvação, ou a regeneração a passividade do homem sob a obra de Deus.

O que coloca a justificação à parte e lhe dá o seu significado único é que: de todos os aspectos da salvação que desfrutamos, a justificação revela e exalta o direito legal do Deus Trino, ou seja, a Sua justiça, tanto dentro de Seu próprio ser quanto em Seu relacionamento com a humanidade. E esta questão sobre a justiça de Deus é fundamental para o aproveitamento da salvação na vida cristã, e é o que faz da justificação o coração do Evangelho.

A justiça de Deus refere-se ao fato de que dentro de Seu próprio ser e em todas as suas relações com a criação, em particular com a humanidade, o Deus Trino age de acordo com o critério de Sua própria bondade ética. Implica também no direito de Deus de insistir e manter esse critério. A justiça de Deus não é mais muito apreciada nas igrejas atuais. Na verdade, seria justo dizer que a falha em honrá-la constitui a base – da maioria dos movimentos – da rejeição da verdade da justificação. As igrejas de hoje estão interessadas no aperfeiçoamento pessoal e até mesmo na libertação do sofrimento. Mas, como Abraham Kuyper uma vez atacou:

“[Toda a questão é apenas um dos] pedidos pela ajuda do grande Médico, que recebe seu pagamento e, em seguida, é despedido com poucos agradecimentos. A questão da justiça não entra no assunto de forma alguma; conquanto que o pecador seja santificado, está tudo bem.25

A justiça de Deus é fundamental para a fé cristã. Ela é uma perfeição essencial do próprio ser e agir de Deus; se Deus fosse injusto ou agisse injustamente, Ele não seria Deus. Considere também que junto com conhecimento e santidade, a justiça é uma perfeição que Deus comunicou ao homem quando o criou à Sua própria imagem, e é uma perfeição que Ele imediatamente restaura por meio de Cristo no novo homem. Além disso, a pessoa e toda a obra de Jesus Cristo tem por objetivo revelar a justiça de Deus. Na cruz, em vez de deixar o pecado impune, Deus o puniu em Seu Filho amado, pois Ele só aceitaria o sacrifício da justiça de Cristo como a satisfação pelo pecado, e Deus justamente o recompensou com a mais elevada honra e glória por Sua obra. O Catecismo de Heidelberg ensina que Jesus foi providenciado a fim de nos restaurar à justiça26, sofreu para adquirir para nós a justiça27, morreu para satisfazer a justiça de Deus28, e ressuscitou e ascendeu para fazer-nos participantes daquela justiça29. O próprio Jesus Cristo, o mistério da piedade, foi justificado no Espírito (Cf. 1Tm 3:16) a fim de revelar a justiça de Deus.

Deveria então nos surpreender que a justificação – o ato forense, jurídico e legal de Deus de declarar-nos justos com base na cruz – seja o coração do Evangelho? Ela o é pois estabelece a justiça de Deus. Ela revela que Deus é o Legislador que estabelece o que é certo e errado, o Juiz que determina o que está em conformidade com a lei, e o Rei que governa com justiça, punindo ou recompensando de acordo com a Sua lei. E uma vez que ela estabelece a justiça de Deus, ela revela a maravilha de Sua graça em justificar os homens. Assim como Herman Bavinck disse:

O que Deus mais estritamente condena na Sua santa lei, é a justificação dos ímpios, o que, Ele disse sobre Si mesmo que jamais faria e o que, mesmo assim, Ele faz. Mas Ele o faz sem comprometer a Sua justiça. Esta é a maravilha do Evangelho30 (Cf. Dt 25:1; Êx 23:07).

Então, o outro significado da justificação é que, porque ela revela a justiça de Deus no estabelecimento de um relacionamento conosco, ela serve como a base jurídica para todas as relações dos cristãos. Abraham Kuyper corretamente observou:

O direito regula as relações. O direito é a base, especialmente das relações interpessoais. Tudo é primeiramente estabelecido e desenvolvido em uma base legal, aquela do direito.31

E portanto, a nossa justificação serve como base para a nossa relação com o mundo, a relação com o pecado, com a morte, com a lei, com a igreja, com cada membro da igreja, com todos os membros do mundo, mas especialmente para o nosso relacionamento com Deus. Não há nenhum relacionamento com Deus à parte da justificação, e não há nenhuma mudança subseqüente na nossa condição através de Deus a menos que haja primeiro uma mudança em nosso status, que é o nosso relacionamento legal com Deus, o direito legal de Deus sobre nós.

Kuyper novamente diz:

É evidente que a regeneração, chamado e conversão, sim, até mesmo a completa reforma e santificação, não são suficientes. Pois, embora estes sejam muito gloriosos e livrem o homem do pecado, da mancha e poluição[…] ainda assim eles não tocam em sua relação jurídica com Deus. Todo membro da igreja deve […] perceber a sua posição jurídica perante Deus, agora e para sempre, que ele não é apenas homem ou mulher, mas uma criatura que pertence a Deus, absolutamente controlada por Deus, culpada e punível quando não age de acordo com a vontade de Deus.32

Iremos agora examinar mais de perto o significado da justificação para o cristão nestas relações.

A Justificação e Nossa Relação com a Igreja

A justificação é fundamental para a nossa relação com a igreja de Jesus Cristo. Primeiramente, ela implica que a correta membresia da igreja é essencial. Para usufruir dos benefícios da justificação pela fé somente, a pessoa deve ser um membro de uma igreja onde a justificação seja ensinada e crida. A razão é que a justificação é recebida por meio da adoração pública. Por suas palavras de adoração, o publicano foi justificado, e por suas palavras de adoração o fariseu foi condenado (Mt 12:37). A declaração de Cristo que alguém é justificado, é ouvida apenas através da pregação pública e adequada do Evangelho por ministros chamados e enviados. Cristo tem de falar, pois só Deus pode perdoar os pecados. Só Deus pode justificar. E Ele escolhe fazê-lo através da pregação. Além disso, a pregação – a qual tem em seu âmago a proclamação de que os pecadores que creem em Cristo são justificados – é a marca principal da verdadeira igreja.

A importância da justificação para a membresia da igreja explica porque Lutero a chamou de o artigo sobre o qual a igreja permanece ou cai. A igreja verdadeira é aquela que prega a justificação pela fé somente, e nada contrário a isso. Uma igreja que não prega e nem pregará a justificação pela fé somente, não é igreja. Onde a justificação pela fé somente é rejeitada e outra forma de justificação é ensinada, simplesmente não pode haver a justificação dos pecadores. Ela pode até ter a forma de religião pura e sem mácula, mas não justifica nenhum membro.

Nesse sentido, eu acho que a pregação que declara os pecadores justificados de alguma outra forma, não é diferente de um clérigo muçulmano radical que ensina a seus seguidores que eles recebem o favor de deus por matarem infiéis, detonando uma bomba suicida presa em sua cintura. Isso até pode ser crido de modo que alguns dão a sua vida por esta causa, mas o que eles pregam simplesmente não acontece. Assim também, onde o pregador declara que alguém é justificado pela fé e obras de fé, ninguém é justificado. Eles podem até declarar que sim, mas isso simplesmente não é verdade.

No que diz respeito a nossa relação com a igreja, a justificação também serve como base para a nossa essencial unidade como membros da igreja e o justo julgamento uns dos outros. É neste contexto que Calvino falou do julgamento de amor ou de caridade. Ele observou que devido a impiedade e hipocrisia sempre ter existido na igreja e em todo membro, a santificação por si só não pode ser usada como uma marca da verdadeira igreja, ou de qualquer membro, a favor do assunto. O julgamento deve ser de acordo com o amor, isto é, de acordo com a forma como nós mesmos seríamos julgados por outros crentes à luz da graciosa justificação de Deus sobre nós. Era disto que Jesus estava falando quando disse: “Não julguem apenas pela aparência, mas façam julgamentos justos” – Jo 7:24 – e “da mesma forma que julgarem, vocês serão julgados” – Mt 7:2. Devemos ter isso em mente na nossa relação com o próximo. Nós somos até mesmo obrigados a orar: “Perdoa os nossos pecados, assim como nós perdoamos os pecados dos outros“.

A razão da justificação servir como base para a nossa unidade e do justo julgamento do próximo é porque ela é o grande equalizador na igreja de Jesus Cristo. A justificação é a base legal para a igualdade espiritual. OCatecismo de Westminster observa atenciosamente este importante fator:

A justificação liberta a todos os crentes igualmente da ira vingadora de Deus, e isto perfeitamente nesta vida, de modo que eles nunca mais caem na condenação. A santificação não é igual em todos os crentes e nesta vida não é perfeita em crente algum.33

A justificação é a única coisa que todos os membros da igreja, desde crianças até os santos mais antigos, têm em comum. Haverá diferenças de raça, de gênero, dons, posição social, posição econômica e educação. Haverá diferenças de crescimento em santificação – crianças que amadurecem espiritualmente cedo e adultos que ainda são espiritualmente crianças – mas todos devem ser vistos e tratados com igualdade com base em sua justificação.

A Justificação e Nossa Relação com o Mundo:Nossa Carne e Pecado

A doutrina da justificação é também significativa para a nossa relação com o mundo e com as coisas que pertencem a ele. A justificação muda toda a nossa relação com a criação, com a lei, com o pecado e com os habitantes do mundo. Esta mudança em nossa relação com o mundo e as coisas nele, é apontada na Escritura. A frase em vigor é que “estamos mortos para” eles. Por isso, a Escritura quer dizer que a nossa relação legal com eles é cortada, de modo que eles já não têm mais qualquer direito sobre nós, enquanto ao mesmo tempo, uma nova relação é estabelecida com Jesus Cristo a fim de que possamos obter toda a vida e proveito d’Ele.

Notamos primeiramente que a Escritura ensina que a justificação muda a relação com a nossa própria carne – que tem sua origem no mundo – e com os pecados – que têm a sua fonte em nossa carne. A justificação nos faz mortos para o pecado e a lei do pecado em nossa carne. Por exemplo, 1 Pedro 2:24 diz:

“[Cristo] levou em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, a fim de que morrêssemos para os pecados e vivêssemos para a justiça.

E Romanos 6:1-2:

Que diremos então? Continuaremos pecando para que a graça aumente? De maneira nenhuma! Nós, os que morremos para o pecado, como podemos continuar vivendo nele?

Portanto, a justificação é a base, a possibilidade e a certeza da santificação – a libertação do poder vigente do pecado em nossa carne. Logo, a justificação e a santificação estão necessariamente e inseparavelmente relacionadas; a relação é de imputação legal à vigente, status à condição, direito à recepção, imputação à habitação interna. E estão necessariamente e inseparavelmente relacionadas exatamente porque é Deus quem justifica. A justificação dá ao crente o direito de ser liberto do domínio do pecado. Através dela o direito do pecado de reinar na carne é legalmente deposto. E, uma vez que a justificação ocorre através de meios da fé – a ligação orgânica e ativa com Jesus Cristo, estabelecida por Deus – o crente é de fato liberto do poder do pecado. Isso explica por que o Catecismo de Heidelberg tão corajosamente proclama que é impossível que a doutrina da justificação pela fé somente faça os homens se tornarem negligentes e profanos34. Por causa da relação com Cristo através a justificação pela fé, o crente está agora morto para o pecado, de modo que é impossível que a vida de Cristo falhe em impulsioná-lo a uma nova vida piedosa. A justificação não depende da santificação, mas é a base jurídica e a certeza desta.

Mas, alguém estar justificado, não significa que o pecado está morto na carne do crente. Isso deveria ficar claro, não somente por causa da nossa própria experiência, mas pela Escritura. Jó falou sobre as iniquidades de sua juventude e que ele abominava a si mesmo por causa de seu pecado. Enquanto Davi fala de sua integridade no Salmo 7:8, ele também confessa sua maldade e sua depravação no Salmo 51:

Sei que sou pecador desde que nasci, sim, desde que me concebeu minha mãe“.

E o apóstolo Paulo, um santo justificado, comentou:

Com a mente, eu próprio sou escravo da lei de Deus; mas, com a carne, da lei do pecado” – Rm 7:25.

O crente deve também reconhecer a presença do pecado dentro de si, porque a fé é contada como justiça ao homem que “confia em Deus que justifica o ímpio” – Rm 4:5. Eu acredito que isso seja verdade, mesmo quando se fala da justificação subjetiva. Os benefícios da justificação são experimentados continuamente em nossas vidas, não somente quando humildemente confessamos a nossa depravação e pecados passados, mas especialmente quando confessamos que, embora sendo santos justificados e santificados, continuamos pecadores em nossa carne. Temos de aceitar a responsabilidade pessoal pela nossa depravação e pelo pecado que provêm desta, como no dilúvio. Caso contrário, nós nos tornamos “o todo” que não precisa do médico e “o justo” que não precisa de arrependimento (Mc 2:17-18). Nas palavras de Calvino:

Para obter a justiça de Cristo, devemos abandonar a nossa própria justiça […]. O coração não pode estar aberto para receber a misericórdia de Deus a menos que esteja absolutamente vazio de toda a opinião de seu próprio valor.35

Um exemplo é o publicano, que foi justificado quando ele clamou: “tem misericórdia de mim, um pecador“, e não “tem misericórdia de mim, que costumava ser um pecador” (Cf. Lc 18:13-14).

O texto acima, explica por que o Catecismo de Heidelberg inclui uma seção inteira sobre a nossa miséria antes da seção sobre a nossa libertação, onde a justificação é proclamada. Um pregador reformado não pula esta seção e simplesmente continua a pregar a nossa libertação, com a atitude: “Bem, essas coisas sobre o pecado, a nossa miséria e a depravação são coisas que costumávamos ser e que costumávamos precisar de libertação“. Isto também está lá para o nosso conforto; está lá para avaliarmos corretamente como nós somos por natureza, pois isto é necessário para desfrutarmos a justificação. É necessário porque Jesus liberta e dá justiça aos pobres, necessitados, oprimidos, humildes, aos que choram, aos cansados ​​e sobrecarregados, aos famintos e sedentos por justiça. Mesmo o justificado, regenerado e santificado apóstolo Paulo ainda poderia confessar:

Jesus Cristo veio ao mundo, para salvar os pecadores, dos quais eu sou o pior” – 1 Tm 1:15.

Bavinck pontuou desta maneira:

Mesmo que o crente compartilhe o perdão dos pecados [justificação], ele deve, conscientemente, de dia a dia, continuar se apropriando deste pela fé, a fim de desfrutar da segurança e conforto do mesmo. É verdade que há muitos que continuam vivendo em função de uma experiência passada e se contentam com isso, mas essa não é a vida cristã.36

Entender a mudança da justificação em nossa relação com o pecado – que estamos mortos para o pecado, mas o pecado não está morto em nós – também é importante para que não minimizemos o pecado ou a lei de Deus. Os oradores anteriores já apontaram o notável fato de que aqueles que atacam a verdade da justificação com base de que esta dificulta a realização de boas obras, em geral, não defendem o critério da lei de Deus, ou a mantêm em alta estima. Isto era verdade sobre os auto-justificados fariseus que eram hipócritas quanto a lei nos dias de Jesus. Isto era verdade sobre os arminianos e seguidores de John Wesley. Há uma razão para isso. Se alguém é justificado, em parte, por suas obras de acordo com o critério da lei de Deus, logo esse critério deve ser atingível. Caso contrário, nenhum pecador pode ser justificado. O resultado de tal pensamento, invariavelmente, é que a perfeição exigida pela lei é diminuída, que a lei só exige perfeita ação externa, ou que Deus aceita ações imperfeitas como base para a justificação. É impressionante também, que quando isso é feito, as boas obras aos olhos dos homens tornam-se más aos olhos de Deus, uma vez que elas não são frutos de gratidão pela nossa justificação, mas são meios para alcançar a justificação. Este fenômeno também explica a reclamação manifesta pelo teólogo presbiteriano, John Murray:

Com demasiada frequência deixamos de compreender a gravidade do nosso pecado contra Deus. Esta é a razão pela qual este grande artigo da justificação não é o que deveria ser, no mais profundo íntimo do nosso espírito. Esta é a razão pela qual o Evangelho da justificação é para tais, de certa forma, um som sem sentido no mundo e na igreja do século XX.37

A Justificação e Nossa Relação com o Mundo:A Criação Natural

Quanto ao significado da justificação para nossas relações no mundo, a justificação é também a base para o relacionamento do cristão com a criação natural. Sendo justificados, nós também somos feitos mortos para o mundo naquele sentido. No entanto, é preciso acrescentar rapidamente que, ao mesmo tempo nós somos reconciliados com o mundo, o qual também é redimido em Cristo. Isto é trazido em dois textos de 2 Coríntios. Em 2 Coríntios 4:14-15, Paulo diz que um dos benefícios da justificação é que todas as coisas agora cooperam para o nosso bem. E em2 Coríntios 5:17-18, ele diz:

Se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas! Tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação.

O que tudo isso significa? Em primeiro lugar, o cristão é feito morto para o mundo, assim como ele é feito morto para o pecado. Estamos mortos para os efeitos de todos os males. Eles simplesmente não podem mudar nossa relação com Deus. As más obras cooperam para o nosso benefício, avivando o novo homem e crucificando o velho. Satanás, mesmo quando nos tenta, está servindo o nosso Senhor. Era disto que Calvino estava falando, quando no contexto da justificação, ele observou que, embora nós sejamos redimidos de um mundo que, em outra circunstância nos confina e oprime, todas as coisas agora cooperam juntamente para o nosso bem38. Nosso conforto não está simplesmente na providência de Deus. O nosso conforto, assim como o Catecismo de Heidelberg ensina, é que o Deus da providência é o Pai que estabeleceu aquela nova relação de adoção quando fui justificado39. Bavinck novamente:

A diferença dos justificados é que em meio a opressão e perseguição, as quais eles são expostos em toda a parte no mundo, eles colocam sua confiança no Senhor e buscam sua salvação e bem-aventurança n’Ele somente. Em nenhum lugar há qualquer libertação para eles, nem em si mesmos nem em qualquer criatura, mas no Senhor seu Deus somente.40

Este fato explica o porquê imediatamente depois de ensinar que “é Deus que justifica“, Paulo faz aquelas perguntas retóricas reconfortantes:

Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada?” – Rm 8:35.

Sendo justificados, todos estes são: ou evitados por Deus, nosso Pai justificador, ou se voltam para o nosso benefício. De qualquer maneira, uma vez justificados, a providência e o mundo, e até mesmo o mal deste mundo, servem a nossa salvação.

Em segundo lugar, esta verdade da justificação pela fé significa que a nossa atitude para com as coisas desta criação terrena é mudada. Como Colossenses 3:2-3 e 1 João 2:15 ensinam:

Mantenham o pensamento nas coisas do alto, e não nas coisas terrenas. Pois vocês morreram, e agora a sua vida está escondida com Cristo em Deus.” “Não amem o mundo nem o que nele há“.

Esta atitude para com o mundo, que é o resultado da nossa justificação, é devidamente descrita por Paulo em Filipenses 3:8, como lemos anteriormente:

Considero [desde que fui justificado]tudo como perda, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por cuja causa perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco.

Calvino chamou essa atitude de um verdadeiro desprezo para com esta vida, acrescentando:

Na verdade, não há meio-termo entre estes dois. Ou o mundo se tornar inútil para nós, ou nos mantêm presos em um amor imoderado por ele.41

Em terceiro lugar, a justificação também estabelece como o cristão faz o uso correto do mundo. É importante lembrar que este desprezo que devemos ter para com o mundo não é absoluto, uma vez que a criação está sendo redimida, e dada para nosso benefício, como crentes justificados. Por isso, a justificação serve como base para o que chamamos de liberdade cristã. Assim como Bavinck tão bem explanou: “O crente que é justificado em Cristo é a criatura mais livre do mundo42. Esta conexão provavelmente explica por que em sua seção sobre a justificação, Calvino também tratou o tema da liberdade cristã. Ele viu que uma vez que estamos mortos para o mundo com base em nossa justificação, a liberdade cristã condena quaisquer restrições anti-bíblicas sobre o uso das coisas boas desta criação. Uma vez que estamos mortos com Cristo quanto aos rudimentos deste mundo, enquanto vivermos nele nós não estamos sujeitos a ordenanças, como não toque, não prove, ou não manuseie (Cl 2:20). Calvino diz que aqueles que querem restringir o uso desta criação de tais leis ou mesmo o seu uso necessário, que eles “acorrentam as consciências com mais força do que a Palavra” e “privam-nos do fruto legítimo da beneficência de Deus43.

Com relação ao uso legal da presente criação pelos justificados, Calvino é muito útil quando nos dá dois princípios fundamentais para se viver. O primeiro é que nós usamos esta criação como se não a usássemos, ou desfrutamos das dádivas dela como se não as tivéssemos. A atitude prática para Calvino é a indiferença. Para ele, adiáforo eram verdadeiramente as coisas indiferentes, ou seja, só podem ser usados ​​legalmente quando somos indiferentes a elas, ou, para usar a linguagem bíblica, estamos mortos para elas. Em segundo, Calvino ensina que, sendo justificados, nós devemos usar e desfrutar da criação, conscientes de que somos mordomos que prestarão contas ao nosso Pai no dia de Cristo.

A Justificação e Nossa Relação com Deus: Paz

Finalmente, discorreremos sobre o significado da doutrina da justificação para o nosso relacionamento com Deus.

Primeiro, notamos que a justificação é o único meio pelo qual somos reconciliados com Deus, isto é, pelo qual podemos desfrutar qualquer relacionamento pacífico e abençoado com Deus. Negativamente, isso significa que aqueles que justificam a si mesmos não são e não podem ser reconciliados com Deus. Neste momento, não estamos tão preocupados com aqueles que o fariam desculpando o seu pecado, mas aqueles que tentam alcançar a justificação com base em suas próprias obras – no todo ou em parte. Não faz nenhuma diferença que tipo de obras eles tentam fazer à parte de sua justificação – sendo obras supostamente realizadas por uma pessoa não regenerada, ou boas obras, supostamente, realizadas com um coração santificado. Aquele que acredita que desempenha alguma parte em sua justificação, simplesmente não é justificado, seja na realidade ou prática.

Bavinck novamente diz: “Ou você possui toda a justiça de Cristo ou nada dela. Você não tem como pegar uma parte dela e preencher o resto por si mesmo“. Em Lucas 16, Jesus declarou francamente aos fariseus que tentavam fazer isso, que eles não eram justificados. Suas duras palavras a todos os que usam suas obras como base para se justificar diante de Deus é esta:

Vocês são os que se justificam a si mesmos aos olhos dos homens, mas Deus conhece os corações de vocês. Aquilo que tem muito valor entre os homens é detestável aos olhos de Deus” – Lc 16:15.

O resultado da auto-justificação é a morte eterna sob a ira de Deus. “O homem que fizer estas coisas viverá por meio delas“, isto é, ele não vai viver de maneira alguma, mas morrerá por meio delas (Rm 10:5). O julgamento oficial dos reformados é:

Se comparecêssemos diante de Deus, confiando em nós mesmos, ou em qualquer outra criatura, embora apenas um pouquinho, deveríamos ser amaldiçoados! Ser consumidos.44

Mas para aqueles que acreditam que eles são justificados por meio da fé somente, de acordo com Romanos 5:1, o benefício preeminente é a paz com Deus. Sobre este texto Calvino comentou:

Ali Paulo diz que nenhuma paz ou alegria tranquila são mantidas a menos que estejamos convencidos de que somos justificados pela fé. Aqueles que tagarelam sobre sermos justificados pela fé, porque ao nascermos de novo somos justificados por meio de um viver espiritual, nunca provaram a doçura da graça.45

Justificados, nós temos paz com Deus, porque Ele remove a culpa do pecado de nossa consciência. A paz com Deus no que diz respeito a culpa do pecado é o que Lutero tanto desejava e o que o levou a interrogar-se sobre o que a Escritura diz. Tentando alcançar a justiça pelas obras, ele estava apavorado em sua própria consciência. Mas deixando tudo isso e, sendo justificado pela fé, todo o pavor foi retirado.

Portanto, da mesma forma, nós recebemos a paz com Deus, porque ele concedeu a nós o direito de desfrutar de todas as bênçãos de Jesus Cristo. A justificação é a base da nossa adoção como filhos e filhas para desfrutar de todos os direitos e privilégios da herança, que é o Seu reino, e para viver em livre comunhão com Ele, que é o pacto da graça. Deve emocionar a cada um de nós nesta noite, que amam o pacto de Deus, saber que ao sermos justificados podemos desfrutar e ter comunhão com Deus.

A Justificação e Nossa Relação com Deus:
Adoração que Glorifica a Deus e uma Vida Santa e Grata

Finalmente, notamos que a justificação é a base para uma adoração apropriada, um louvor sincero, honra e glória de Deus, seja por palavras ou obras. Sem a justificação, não há como se ter uma vida santa de gratidão, que é uma forma de adoração. Calvino observou isso também. Depois de chamar a justificação da principal dobradiça sobre a qual a religião se dependura, ele vai adiante e explica o porquê:

A menos que primeiro você entenda o que é a sua relação com Deus e a natureza do juízo d’Ele para com você, você não tem nem um fundamento sobre o qual estabelecer a sua salvação, nem um sobre o qual construir piedade para com Deus.46

Aqui, Calvino contraria todos os defensores da justificação pelas obras, fé e obras, ou a fé e as obras da fé. Contra a acusação de que a doutrina da justificação pela fé somente impede uma vida santa, ele corretamente afirma que sem ela os homens não podem e nem vão viver piedosamente.

A história confirma esta afirmação. Pois sempre que a doutrina da justificação pela fé somente é derrubada, rejeitada, ou minimizada, os membros da igreja se tornam mais ímpios e profanos – assim como o orador anterior já mencionou. A razão é que uma vida santa é o fruto da gratidão a Deus por Sua graça em nos justificar. Sempre que acreditamos que temos alguma parte, embora bem pequena, na nossa justificação, não podemos ser gratos a Deus. Ao invés disso, nós não apenas seremos orgulhosos e complacentes, mas, como Calvino afirma:

Tentaremos, para nosso grande mal, roubar do Senhor as graças que devemos por Sua livre bondade.47

Não há como ter verdadeira adoração, louvor sincero, honra e glória a Deus, com a doutrina da justificação pela fé e obras – somente há vanglória pessoal. Ou, como a Bíblia declara: “Se de fato Abraão foi justificado pelas obras, ele tem do que se gloriar, mas não diante de Deus” – Rm 4:2. E isso é abominável aos olhos de Deus, pois isto rouba d’Ele a glória de Sua justiça. Calvino novamente diz:

Quem gloria a si mesmo, se gloria contra Deus. O homem não pode, sem sacrilégio, reivindicar para si mesmo nem mesmo uma migalha de justiça, pois esta mesma medida é arrancada e roubada da glória da justiça de Deus.48

Mas quando acreditamos que somos justificados pela fé somente, ali haverá verdadeira e aceitável ação de graças, louvor, honra e glória a Deus manifesto em nossas vidas e na adoração. Isso ocorre porque, como dissemos anteriormente, quando Deus nos justifica, Ele estabelece e nos faz sentir, de uma forma maravilhosa, a Sua justiça, que por sua vez, amplia e exalta Sua graça. É por isso que a Escritura chama o Evangelho da justiça de glorioso Evangelho. O propósito do Senhor ao imputar justiça a nós, de forma graciosa em Cristo, através da justificação pela fé somente, é de “demonstrar a Sua própria justiça” – Rm 3:26. Ele deseja que toda a boca se cale e todo o mundo esteja sob o juízo d’Ele (Rm 3:19-31), pois enquanto o homem tiver alguma coisa a dizer em sua defesa, este diminui a glória de Deus.

Sem ser justificado pela fé somente, também não há como ter nenhuma confiança diante da justiça de Deus. Calvino diz:

Alguém pode facilmente e prontamente tagarelar sobre o valor das obras para justificar os homens. Mas quando chegamos diante da presença de Deus, somos obrigados a deixar tais coisas de lado. Como responderemos ao Juiz celestial quando Ele nos chamar para prestar contas? Nós mesmos vamos encarar esse Juiz. Não como nossas mentes naturalmente imaginam Ele, mas como Ele é descrito para nós na Escritura. Por cujo brilho as estrelas são escurecidas, por cuja força as montanhas são derretidas, por cuja ira a terra é abalada, cuja sabedoria apanha os sábios na sua própria astúcia, além de para cuja pureza todas as coisas estão contaminadas, cuja justiça nem os anjos podem suportar, Aquele que não faz do homem culpado inocente, cuja vingança, quando uma vez acendida, penetra as profundezas do inferno. Vamos contemplá-Lo, digo eu, sentado em julgamento para analisar os atos dos homens. Quem permanecerá confiante perante seu trono? A resposta é: o homem que é justificado pela fé somente e apenas este homem.49

Todos esses benefícios para o crente justificado no que diz respeito a sua relação com Deus estão resumidos em uma das mais belas passagens das confissões reformadas:

O resultado de sermos justificados gratuitamente pela Sua graça é que os crentes atribuem toda a glória a Deus, se humilham perante Deus e reconhecem a si mesmos como realmente são, confiam e se baseiam somente na obediência do Cristo crucificado. Isso nos dá confiança em nos achegarmos a Deus, libertando a consciência do terror, medo e pavor. Portanto, assim como Hebreus 4:16 diz, podemos ir corajosamente até o trono da graça, para alcançarmos misericórdia e acharmos graça para socorro no tempo oportuno.50

E se estes fossem os únicos benefícios da justificação pela fé somente, isto deveria ser o suficiente para nos motivar a lutar contra o próprio inferno por esta doutrina. E muitos o têm feito.

Concluímos com uma citação apropriada de Martinho Lutero:

Quem sai do artigo da justificação não conhece a Deus e é um idólatra. Pois, quando este artigo é retirado, nada permanece, somente o erro, a hipocrisia, a impiedade e a idolatria, embora isso pareça ser compatível com a verdade, a adoração à Deus e santidade.

Deem graças a Deus por este dom inefável.

Para material Reformado adicional em Português, por favor, clique aqui.


1 Tradução: Primeira Igreja Protestante Reformada.
2 Catecismo de Heidelberg, Q&R. 23, 24, 51 e Confissão Belga, Art. 22-24.
3 Catecismo de Heidelberg, R. 126.
4 Ibid, R. 60.
5 Ibid, R. 60.
6 Ibid, Q&R. 61.
7 Ibid, Q&R. 62.
8 Ibid, Q&R. 63.
9 Confissão Belga, Art. 23.
10 A palavra mais próxima do original é “constituídos” e não “feitos“, como aparece na maioria das versões.
11 Tradução livre.
12 Catecismo de Heidelberg, Q&R. 60.
13 Ibid, Q&R. 60.
14 Confissão Belga, Art. 24.
15 Tradução: Igreja Presbiteriana Ortodoxa.
16 Tradução: Igreja Presbiteriana da América.
17 Tradução: Igreja Reformada Unida.
18 Tradução: Igreja Cristã Reformada Ortodoxa.
19 Catecismo de Heidelberg, Q. 64.
20 Cânones de Dort, Cap. 2, Rej. de Erro 4.
21 Tradução: O Pacto de Deus e os Filhos dos Crentes.
22 Os arminianos são 90% ou mais dos cristãos professos na América do Norte que se chamam evangélicos e fundamentalistas.
23 Tradução: Igrejas Protestantes Reformadas.
24 Catecismo de Heidelberg, Q&R. 63.
25 A. Kuyper, The Work of the Holy Spirit, pág. 375.
26 Catecismo de Heidelberg, Q&R. 16.
27 Ibid, Q&R. 37.
28 Ibid, Q&R. 40.
29 Ibid, Q&R. 45 e 49.
30 H. Bavinck, Our Reasonable Faith, pág. 450.
31 A. Kuyper, The Work of the Holy Spirit, pág. 376.
32 A. Kuyper, The Work of the Holy Spirit, pág. 377.
33 Catecismo de Heidelberg, Q&R. 77.
34 Ibid, Q&R. 64.
35 J. Calvino, Institutas, 3.11.3; 3.12.7.
36 H. Bavinck, Our Reasonable Faith, pág. 463.
37 J. Murray, Redemption Accomplished and Applied, pág. 117.
38 J. Calvino, Institutas, 3.15.8.
39 Catecismo de Heidelberg, Q&R. 27.
40 H. Bavinck, Our Reasonable Faith, pág. 446.
41 J. Calvino, Institutas, 3.9.1-2.
42 H. Bavinck, Our Reasonable Faith, pág. 468.
43 J. Calvino, Institutas, 3.10.1.
44 Confissão Belga, Art. 23.
45 J. Calvino, Institutas, 3.13.5.
46 Ibid, 3.11.1.
47 Ibid, 3.13.1.
48 Ibid, 3.13.2.
49 Ibid, 3.12.1.
50 Confissão Belga, Art. 23.
Show Buttons
Hide Buttons