David J. Engelsma
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto2
A influente Banner of Truth Trust, na Escócia, acabou de publicar (1995) o livro Spurgeon v. Hyper-Calvinism: The Battle for Gospel Preaching de Iain H. Murray.3 A Editora pretende que o livro seja uma arma principal em sua guerra contra o terrível inimigo (o hipercalvinismo) na Grã Bretanha.
O porquê numa Inglaterra inundada com o liberalismo, o misticismo do movimento carismático e o arminianismo, Murray e a Trust se fixam quase que obsessivamente sobre o erro do hipercalvinismo é imcompreensível. O próprio Spurgeon, o campeão a quem Murray coloca para lutar por ele neste novo livro, disse de um dos principais hipercalvinistas do seu tempo: “Gill é o corifeu [líder—DJE] do hipercalvinismo, porém, se os seus seguidores não forem além do seu mestre, não desviarão muito” (citado em George M. Ella, John Gill and the Cause of God and Truth [Go Publications, 1995], p. 134).
O desejo da The Banner of Truth Trust pela batalha abandonada contra o hipercalvinismo é ainda mais impressionante à luz da sua política de evitar controvérsias. A Trust recusa abertamente, por exemplo, defender a doutrina fundamental Reformada e Presbiteriana do batismo infantil e a verdade intimamente relacionada do pacto contra os seus detratores na Grã Bretanha. A rejeição do batismo infantil e, com ele, do pacto da graça não é menos sério que o erro do hipercalvinismo. O próprio Spurgeon era culpado desse grande afastamento da fé Reformada. Em adição, a rejeição do batismo infantil está de longe mais espalhada nos círculos calvinistas nas Ilhas Britânicas que o hipercalvinismo.
Não existe nenhum campeão da teologia pactual no passado do calvinismo escocês ou inglês a quem a The Banner of Truth Trust poderia ressuscitar para direcionar o erro Batista para o campo Reformado na Grã Bretanha?
Seja como for, Spurgeon versus Hipercalvinismo é, no essencial, correto em suas teses positivas e negativas. A tese positiva é que a pregação do evangelho inclui o chamado, ou a convocação, a todos os ouvintes que se arrependam dos seus pecados com arrependimento verdadeiro e creiam no Salvador com fé genuína. Isso, a despeito da condição espiritual deles e seu destino eterno apontado por Deus. A tese negativa é que a rejeição do que a teologia Reformada tem sempre sustentado como “o chamado externo do evangelho” constitui hipercalvinismo.
Hipercalvinismo, um erro relativamente raro na história da igreja e de forma alguma uma das ameaças mais prementes à fé hoje, exceto, evidentemente, nas Ilhas Britânicas, é um ensino que exagera tanto e distorce tanto um aspecto importante do calvinismo que acaba desfigurando o todo. Embora a tendência prevalecente seja diminuir o calvinismo pleno e robusto, o hipercalvinsmo vai além dele (“hiper” significa “além”). O erro de negar que o evangelho ordena que todos se arrependam e creiam pode, com justiça, ser descrito como hipercalvinismo, pois aqueles que sustentam o erro defendem-no em termos de calvinismo histórico. Visto que o pecador não-regenerado é, em virtude de sua depravação total, incapaz de se arrepender e crer, ele não pode ser exortado a se arrepender e crer. Por outro lado, assim eles argumentam, convidar o pecador não-regenerado a crer seria implicar sua capacidade natural para fazê-lo, contradizendo assim o testemunho bíblico sobre a condição natural do pecador, a saber, de morte espiritual.
Charles H. Spurgeon estava correto em se opor ao hipercalvinismo em seu tempo, assim como Iain Murray hoje. As Protestant Reformed Churches in America [Igrejas Protestantes na América] também rejeitam este hipercalvinismo. Em sua “Declaração de Princípios das Igrejas Protestantes Reformadas: Uma Breve Exposição das Confissões com respeito a Certos Pontos de Doutrina como Mantidos pelas Igrejas Protestantes Reformadas” (1951), adotada em sínodo, elas dizem isso: “Mantemos … que a pregação chega a todos; e que Deus ordena seriamente que todos creiam e se arrependam, e que a todos que vêm e crêem ele promete vida e paz.” Essa é a posição oficial das igrejas Reformadas nos Cânones de Dordt: “A promessa do Evangelho é que todo aquele que crer no Cristo crucificado não pereça mas tenha vida eterna. Esta promessa deve ser anunciada e proclamada sem discriminação a todos os povos e a todos os homens, aos quais Deus em seu bom propósito envia o Evangelho, com a ordem de se arrepender e crer” (II:5).
O motivo de Spurgeon se opor ao hipercalvinismo também era correto. O hipercalvinismo, recusando chamar a todos os que ouvem, debilita seriamente a atividade missionária da igreja. Assim, contrário às suas próprias intenções, ele coloca um obstáculo no caminho da reunião que Cristo faz dos seus eleitos dentre as nações.
Mas nos fundamentos atribuídos a Spurgeon por Iain Murray para sua—de Spurgeon—rejeição do hipercalvinismo, Spurgeon caiu no erro que é pior que aquele ao qual ele se opôs. Esse é o erro, plenamente compartilhado por Murray, de que Deus ama todo pecador que ouve o evangelho com um amor revelado no Cristo crucificado e, neste amor, deseja a salvação de todo pecador (pp. 106-117, “O Hipercalvinismo e o Amor de Deus”). A pregação do evangelho a todos, particularmente a ordem para que todos se arrependam e creiam, é agora concebida como graça para todos. Há graça no evangelho, isto é, a graça de Deus no Jesus Cristo crucificado, a todo pecador sem exceção que ouve a pregação.
Isto é arminianismo. Isto é arminianismo em sua característica mais grosseira e condenável: um amor universal e ineficaz de Deus em Jesus Cristo; uma vontade universal de salvação que é frustrada pela vontade contrária de pecadores; graça no evangelho bendito que é resistida num pecador a quem Deus dirige esta graça e que permanece como não-salvo; e, por boa e necessária implicação, a salvação depende no final da decisão do homem.
A alternativa ao hipercalvinismo é o arminianismo!
Assim aconteceu com Spurgeon!
Assim, também, com Iain Murray e The Banner of Truth Trust!
Se este era o fundamento proposto nos anos 1700 para chamar todos a se arrepender e crer, não é de admirar que os hipercalvinistas ingleses dissessem não a todo chamado externo do evangelho. Tal doutrina do chamado externo contraria diretamente e, assim, destrói o sistema inteiro da graça soberana e particular.
Murray é muito Reformado para não sentir instintivamente que seu (e de Spurgeon) evangelho-graça universal está devastando a própria essência do calvinismo histórico e confessional. Sua resposta, contudo, é criar distinções completamente não fundamentadas que, embora falhando em redimir seu ensino da graça universal no evangelho da heresia arminiania, compromete desesperadamente sua doutrina e, de fato, torna-o vulnerável à acusação de duplicidade descarada.
Primeiro, ele inventa uma distinção entre “amor especial que assegura” a salvação para algumas pessoas e um amor universal e não-eletivo que falha em assegurar a salvação de qualquer um. Mas os dois tipos de amor são expressos e revelados no evangelho! Ambos são pregados como desejando a salvação de pecadores!
Não se deve interpretar todas as referências ao amor divino nas Escrituras no sentido de amor universal (arminianismo), nem todas no sentido particular (hipercalvinismo). Há uma diferenciação observável nas Escrituras. Falando a cristãos, Spurgeon muitas vezes mostrara claramente a diferença: “Amados, o amor benevolente de Jesus estende-se mais do que as linhas do Seu amor que elege … Esse (isto é, o amor revelado em Mateus 23:37) não é o amor que jorra esplendentemente sobre os Seus escolhidos, entretanto não deixa de ser amor verdadeiro (pp. 115-116).
Esta distinção compromete a doutrina de Murray de um amor universal no evangelho. Embora este amor universal no evangelho supostamente indique e realize um desejo sincero de Deus salvar todos os que ouvem, de fato ele não pode salvar ninguém. Ele é meramente um tipo de amor não-eletivo que falha em assegurar a salvação de alguma pessoa. O que há de bom nisso? O que Murray ganhou inventando tal coisa? Como a doutrina de Murray do amor de Deus no evangelho difere realmente daquela que ensina o amor particular no evangelho para os eleitos somente? E por que todo o barulho de uma batalha contra a doutrina do amor ou graça particular na pregação?
Segundo, embora afirmando que a distinção entre os dois tipos de amor no evangelho—um amor eleito que assegura a salvação para alguns e um amor não-eletivo que não assegura a salvação de ninguém—seja “importante”, Murray adiciona que em sua pregação o pregador não deveria mencionar a distinção.
Embora firmemente apegado a estas importantes distinções teológicas, Spurgeon não acreditava que tinham que ser, necessariamente, introduzidas na apresentação do evangelho aos incrédulos … (p. 116).
O missionário ou evangelista diz à sua audiência: “As boas novas é que Deus ama todos vocês com um amor em Jesus Cristo que deseja sua salvação.” Ele deliberadamente deixa a impressão com sua audiência que Deus ama a todos eles igualmente, com o mesmo amor, e deseja a salvação deles com um e o mesmo desejo. Para si mesmo, contudo, o missionário fica pensando: “Alguns de vocês Ele ama meramente com um amor não-eletivo que não irá e não pode salvar vocês, e alguns de vocês Ele deseja salvar com um desejo que é nulificado pela sua vontade eterna de não salvar vocês.” Isso não é um engano grosseiro?
Eu tenho duas sugestões bem intencionadas para o Rev. Iain Murray e seus colegas da The Banner of Truth Trust. Primeiro, abandonem a noção que vocês alguma vez converterão do hipercalvinismo, ou dissuadirão de se converter ao hipercalvinismo, por meio de sua doutrina de um amor universal de Deus e um desejo universal de salvação na pregação do evangelho, sequer uma alma que verdadeiramente conheça e ame a graça soberana. Sua doutrina que no evangelho Deus ama e deseja salvar todos os pecadores sem exceção me levaria ao hipercalvinismo, se essas fossem as únicas opções. Pelo menos, no hipercalvinismo Deus é Deus, de uma única mente e vontade; consistente e verdadeiro consigo mesmo; soberano em seu amor em Cristo; e realizando sem fracasso o desejo precioso de salvar. Pelo menos, no hipercalvinismo Jesus é o Salvador, e não, em multidões de ocasiões, meramente um pretenso Salvador. Pelo menos, no hipercalvinismo o Espírito Santo é honrado como o poder irresistível de Deus na pregação.
Segundo, ao invés de continuar futilmente a criticar a fortaleza hipercalvinista com suas munições arminianas, arranje uma discussão teológica da doutrina vital do chamado do evangelho entre aqueles que estão interessados e tenham algo a contribuir. Isso poderia ser feito nos periódicos ou numa conferência. Deixe que as posições distintas sejam expostas e examinadas à luz da Escritura e das confissões Reformadas (opiniões de homens, mesmo as opiniões de homens piedosos como Spurgeon, não são autoritativas).
Mas existem três posições distintas, não duas como você parece supor:
1) o chamado é graça universal (Murray e The Banner of Truth);
2) o chamado é graça particular e, portanto, não deve ser dirigido nem mesmo em seu aspecto externo a ninguém, exceto aos ouvintes eleitos e regenerados (hipercalvinismo);
3) o chamado de Deus no evangelho, como a eleição no qual se origina e a cruz na qual se baseia, é graça particular, mas o aspecto externo do chamado—a convocação ao arrependimento e fé—pode, e deve, ser dirigido a todos os ouvintes, com toda seriedade (as Igrejas Protestantes Reformadas, o Comunhão Reformada Pactual da Irlanda do Norte, a Igreja Presbiteriana Evangélica da Austrália, e outras).
Por que não uma conferência na qual todas as posições sejam representadas? Que conferência interessante e proveitosa seria essa! Se fosse realizada na América do Norte, dificilmente encontrar-se-ia uma igreja grande o suficiente para acomodar a audiência.
Por amor à fé Reformada e a unidade dos santos calvinistas.
Fonte: Standard Bearer, 15 de Abril de 1996.
1Nota do tradutor: O título original do artigo é “Hipercalvinismo e Arminianismo: As Alternativas?”
2E-mail para contato: [email protected]. Traduzido em março/2007.
3Nota do tradutor: No Brasil, publicado em 2006 pela Editora PES com o título: Spurgeon versus Hipercalvinismo: A Batalha pela Pregação do Evangelho. Nesta tradução, usaremos a paginação da versão brasileira.
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