Dale Kuiper
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto1
Assim como os filhos da Reforma entendem que o maior evento entre Pentecostes e o retorno de Cristo foi acima de tudo um retorno às Escrituras, os calvinistas devem saber o que o teólogo da Reforma dizia ser as Escrituras.
Foram as Institutas de Calvino que—com sua exposição calma, clara e positiva da fé evangélica na autoridade irrefragável da Sagrada Escritura—deram estabilidade às mentes hesitantes, confiança aos corações desalentados, e colocou nos lábios de todos uma brilhante apologia em face das calúnias dos inimigos da Reforma.2
A visão das Escrituras de Calvino é apresentada nos primeiros nove capítulos das Institutas. Foi somente após lançar os princípios da autoridade bíblica que permitiu ele e leitor passarem a considerar as doutrinas de Deus, do homem, de Cristo, da salvação e da igreja. Dos capítulos um ao cinco, Calvino trata assuntos tais como a relação entre o conhecimento de Deus e o conhecimento de nós mesmos, a natureza do conhecimento de Deus, e o que a queda fez ao conhecimento do homem. Ele enfatiza no capítulo seis que o guia e ensino da Escritura é necessário mesmo para conhecer Deus corretamente como criador. Repetidamente ele enfatiza que “Deus não apenas se serve de mestres mudos [a criação], mas ainda abre seus sacrossantos lábios, não simplesmente para proclamar que se deve adorar a um Deus, mas ao mesmo tempo declara ser esse Aquele a quem se deve adorar.” Ele nos lembra que não está tratando o pacto ou a salvação nos primeiros nove capítulos: “mas somente enfocarei como se deve aprender da Escritura que Deus, que é o Criador do mundo, se distingue, por marcas seguras, de toda a multidão forjada de deuses.”3
É claro, portanto, que Calvino ensinou que o estudo da criação pela ciência, embora mais que suficiente para privar a ingratidão dos homens de toda escusa, não era suficiente para dar algo mais que noções confusas da deidade. Não existe, em sua visão, uma relação recíproca entre a Escritura e as descobertas científicas, pela qual cada uma lança luz verdadeira sobre a outra, como os evolucionistas teístas mantém hoje. Os calvinistas devem evitar essa armadilha orgulhosa, e confessar que somente a Escritura nos dá a verdade com respeito à criação e o criador.
O Estabelecimento da Autoridade da Escritura
No capítulo sete das Institutas, Calvino ensina que a menos que a autoridade da Escritura seja firmemente estabelecida, dúvidas florescerão e haverá uma falta de reverência para com a Palavra.
Como, porém, não se outorguem oráculos dos céus quotidianamente, e só subsistem as Escrituras, na qual aprouve ao Senhor consagrar sua verdade e perpétua lembrança, elas granjeiam entre os fiéis plena autoridade, não por outro direito senão aquele que emana do céu onde foram promulgadas, e, como sendo vivas, nelas se ouvem as próprias palavras de Deus.4
Calvino chama de um “erro perniciosíssimo” ensinar que as Escrituras derivam sua autoridade e valor da determinação da igreja, ou que a igreja decidiu que reverência se deve à Escritura, e que livros deveriam ser arrolados em seu cânon.5
Citando Efésios 2:20, que diz que a igreja é edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, Calvino destrói a argumento que a Escritura depende das decisões da igreja. Se o fundamento da igreja é a Escritura, então a Escritura precede a existência da igreja, e a igreja não pode existir sem a Escritura. Como, então, ela pode ser o juiz? “Conseqüentemente, enquanto a recebe e com sua aprovação a sela, a Igreja não a converte de duvidosa em autêntica, ou de outro modo seria controvertida; ao contrário, visto que a reconhece como sendo a verdade de seu Deus, por injunção da piedade, a venera sem qualquer restrição.”6
Os inimigos da autoridade bíblica gostam de citar a declaração de Agostinho, “na qual ele só creria no evangelho se a autoridade da Igreja o movesse a isso.”7 Calvino chama isso de falso e injusto, pois o contexto da declaração de Agostinho é ignorado. Agostinho, quando argüindo contra os maniqueus, escreve isso somente daqueles estranhos à fé, que não poderiam ser persuadidos a crer no evangelho como a verdade de Deus, a menos que vissem concordância uniforme na igreja. Pois como a igreja pode ordenar a obediência da fé, se ela mesmo não concorda em doutrina? Agostinho mantinha que a autoridade da igreja era somente uma introdução para preparar os ouvintes para a fé do evangelho.
Calvino insiste que a principal prova para a autoridade da Bíblia é derivada do caráter do Divino Locutor. “Os profetas e os apóstolos não alardeiam, seja sua habilidade, sejam quaisquer elementos que granjeiam credibilidade aos que falam, nem insistem em razões, mas invocam o sagrado nome de Deus, mediante o qual todo mundo seja compelido à obediência”. Ele imediatamente adiciona: “… o testemunho do Espírito é superior a toda razão. Ora, assim como só Deus é idônea testemunha de si mesmo em sua Palavra, também assim a Palavra não logrará fé nos corações humanos antes que seja neles selada pelo testemunho interior do Espírito.”8 O que devemos pensar dos calvinistas do século XXI que questionam a natureza e extensão da autoridade bíblica? Por que eles nomeiam comitês para estudar tal questão? Isso é conspiração infiel contra o princípio fundamental da Reforma.
Após chamar de uma verdade inegável que “aqueles a quem o Espírito Santo interiormente ensinou aquiescem firmemente à Escritura, e esta é indubitavelmente autenticada por si mesma”—uma grandiosa declaração ecoada no Artigo 5 da Confissão Belga—Calvino não teme colocar a incapacidade da razão para estabelecer a Bíblia como a palavra de Deus ao lado da racionalidade da fé que assim crê. “Portanto, aqui está uma convicção que não requer razões; um conhecimento ao qual assiste a mais sublimada razão; na verdade, no qual a mente descansa mais firme e constantemente que em quaisquer razões; enfim, um sentimento que não pode nascer senão de revelação celestial.”9 Isso é o que todo crente experimenta no profundo do seu coração. Isso é o que Isaías quer dizer quando declara: “E todos os teus filhos serão ensinados do SENHOR” (Is. 54:13). E esse grande dom da fé é o que distingue o eleito do restante da humanidade. Somente aos eleitos é dado conhecer os mistérios de Deus.
Provas Racionais Assistem a Crença na Escritura
Embora a fé seja necessária para estabelecer a verdade e autoridade da Escritura no coração de alguém, Calvino admite que certas provas racionais podem ajudar o crente em sua confissão e defesa da doutrina bíblica—mas somente se o fundamento da fé já tiver sido lançado. “De igual modo, em contrapartida, quando, devotamente e consoante a dignidade de que ela se reveste, uma vez a temos abraçado como separada da sorte comum das coisas, esses elementos que até então não assumiam relevância para infundir-nos e fixar-nos na mente sua sólida credibilidade, são agora subsídios mui apropriados.” Calvino tinha em mente a “bem ordenada e disposta … dispensação da sabedoria divina” na Escritura; “quão celeste [era ela] em todos os aspectos, e sua doutrina nada tendo de terreno”; “quão esplêndida [era] a harmonia de todas as partes entre si”; e a “dignidade do conteúdo … [ao invés da] graça da linguagem.” Ele crê que a “a verdade da Sagrada Escritura se manifesta de forma tão sobranceira, que necessidade nenhuma há do artifício das palavras” e “que os sublimes mistérios do reino celeste [foram], em larga medida, transmitidos em termos de linguagem singela e sem realce.”10
Todavia, “alguns profetas têm um modo de dizer elegante e polido, até mesmo esplendoroso, de modo que sua eloqüência não é inferior à dos escritores profanos. E, com tais exemplos, o Espírito Santo quis mostrar que não lhe faltava eloqüência, enquanto em outros lugares fez uso de um estilo não burilado, nem pomposo.”11 Quer a linguagem bíblica seja uma doce corrente de palavras, ou caracterizada pela rusticidade, a inspiração da Escritura é por toda parte evidente.
Outra prova auxiliar à fé na Escritura é a resistência da palavra de Deus por todas as gerações. Em admiração, Calvino escreve,
Pois, nem se deve julgar ser de importância mínima que, desde que a Escritura foi publicada, constantemente se lhe anuiu à obediência o querer de tantos séculos, e por mais que Satanás, com todo o mundo, a tenha tentado, por meios perplexivos, seja oprimindo, seja destruindo, seja de todo refreando e obliterando da lembrança dos homens, entretanto sempre, como a palmeira, tem ela subido mais alto e persistido de forma inexpugnável.12
Calvino atribui a preservação da Escritura por todas as eras, não à igreja ou à fidelidade dos homens, mas à providência de Deus. Esse fato confortador e histórico é uma prova adicional que a Bíblia é um livro divino.
A prova final que pode auxiliar nossa fé em receber as doutrinas da Bíblia com confiança é que a Escritura foi confirmada pelo sangue de muitos santos.
Esses varões, uma vez recebida esta doutrina, não vacilaram em enfrentar a própria morte, animosa e intrepidamente, e até mesmo com exaltado júbilo. Transmitida que nos foi com esse penhor, como não a esposaremos nós com segura e inabalável convicção? Portanto, não é uma comprovação de pouco peso o fato de a Escritura foi selada pelo sangue de tantas testemunhas.
Calvino termina o capítulo oito das Institutas com a recordação que “a Escritura será realmente satisfatória para o conhecimento salvífico de Deus … quando a certeza lhe for fundada na convicção interior pelo Espírito Santo. De fato, esses testemunhos humanos, que subsistem para confirmá-la, de fato não serão debalde se acompanharem aquele testemunho primordial e supremo, como subsídio secundário de nossa limitada compreensão.”13
Alegações de Revelações Especiais Subvertem a Piedade
Calvino é intolerante para com aqueles que pretendem não necessitar da Escritura, porque receberam revelação especial do Espírito. Ele chama essa tentativa de separar a palavra do Espírito de ridícula, pueril, perversa e subversiva. “Logo, não é função do Espírito que nos foi prometido configurar novas e inauditas revelações ou forjar um novo gênero de doutrina, mediante a qual sejamos afastados do ensino do evangelho já recebido; ao contrário, sua função é selar-nos na mente aquela mesma doutrina que é recomendada através do evangelho.”14 Visto que o Espírito é o autor da Escritura, ele não pode por revelações secretadas ser inconsistente consigo mesmo. Ele sempre testifica sua própria verdade que expressou na Escritura, com o resultado “que manifesta e patenteia seu poder somente onde a Palavra é recebida com a devida reverência e honra.”15 O antídoto para o crescente misticismo e a ênfase imprópria sobre o Espírito em nossos dias é a doutrina reformada da suficiência da Sagrada Escritura.
Calvino nitidamente limita às noções confusas da deidade o que pode ser conhecido a partir da criação, nega que a autoridade da Escritura dependa das decisões da igreja, adverte contra argumentos racionais para a inspiração bíblica se a fé não estiver primeiro presente, e conclui com crítica severa àqueles que desejam separar a Palavra do Espírito. Citações extensas das Institutas mostram isso. Seu apetite não foi estimulado a dar às Institutas uma primeira ou nova leitura cuidadosa?
Fonte: David Engelsma (ed.), The Sixteenth-Century Reformation of the Church, pp. 69-74.
1E-mail para contato: [email protected]. Traduzido em setembro/2007.
2Benjamin B. Warfield, “Literary History of Calvin’s Institutes” in Calvin, Institutes of the Christian Religion, trans. John Allen (Philadelphia: Presbyterian Board of Christian Education, n.d.), 1:v.
3
Calvino, Institutas, 1.6.1. [Em todas as citações das Institutas, utilizamos a tradução brasileira do dr. Waldyr Carvalho Luz].
4Ibid., 1.7.1.
5Ibid., 1.7.1.
6Ibid., 1.7.2.
7Ibid., 1.7.3.
8Ibid., 1.7.4.
9Ibid., 1.7.5.
10Ibid., 1.8.1.
11Ibid., 1.8.2.
12Ibid., 1.8.12.
13Ibid., 1.8.13.
14Ibid., 1.9.1.
15Ibid., 1.9.3. Minha tradução, a partir da versão das Institutas utilizada pelo autor.
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