Rev. Angus Stewart
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto1
Na Dedicatória ao seu comentário sobre os Salmos, João Calvino confessa que palavras não podem transmitir a maravilha desse livro inspirado: “As riquezas variadas e esplêndidas que compõem este tesouro não são algo fácil de se expressar em palavras … cuja grandeza não admite permanecer completamente velada.”2
Para Calvino, os Salmos eram um livro único no cânon da Sagrada Escritura.
Não existe outro livro onde mais se expressem e magnifiquem as celebrações divinas, seja da liberalidade de Deus sem paralelo em favor de sua Igreja, seja de todas as suas obras. Não há nenhum outro livro em que haja registrados tantos livramentos, nenhum outro em que as evidências e as experiências da providência paternal e a solicitude que Deus exerce para conosco sejam celebradas com tanto esplendor de expressão e ao mesmo tempo com a mais estrita aderência à verdade. Em suma, não há outro livro em que somos mais perfeitamente instruídos na correta maneira de louvar a Deus, ou em que somos mais poderosamente estimulados à realização desse sacro exercício.3
Os Salmos são cheios das riquezas da doutrina bíblica, e os santos encontram neles grande bem-aventurança e paz.
Numa palavra, aqui não só encontraremos enaltecimento à bondade de Deus, a qual tem por meta ensinar aos verdadeiros crentes a confiadamente buscarem nele, de todo o seu coração, auxílio em todas as suas necessidades. Mas também descobriremos que a graciosa remissão dos pecados, a qual é o único meio de reconciliação entre Deus e nós, e a qual restaura nossa paz com ele, é tão demonstrada e manifesta, como se aqui nada mais faltasse em relação ao conhecimento da eterna salvação.4
O reformador de Genebra via nos Salmos uma preparação para a piedade cristã vital, principalmente o “levar a cruz.” Indubitavelmente ele estava pensando nas palavras do Senhor Jesus e “todo o curso da vida de Davi.”5
Além do mais, ainda que os Salmos estejam repletos de todo gênero de preceitos que servem para estruturar nossa vida a fim de que a mesma seja saturada de santidade, de piedade e de justiça, todavia eles principalmente nos ensinarão e nos exercitarão para podermos levar a cruz; e levar a cruz é uma genuína prova de nossa obediência, visto que, ao fazermos isso, renunciamos a liderança de nossas próprias afeições e nos submetemos inteiramente a Deus, permitindo-lhe nos governar e dispor de nossa vida segundo os ditames de sua vontade, de modo que as aflições que são as mais amargas e mais severas à nossa natureza se nos tornem suaves, porquanto procedem dele.6
Uma característica notável do livro de Salmos, na estima de Calvino, é que eles cobrem todo o âmbito das emoções e fraquezas cristãs, expondo nosso coração ao olho perscrutador de nosso Pai no céu e nos chamando ou atraindo ao auto-exame. “Tenho por costume,” escreve Calvino, “denominar este livro – e creio não de forma incorreta – de: ‘Uma Anatomia de Todas as Partes da Alma.’” Ele explica a razão para esse título perspicaz:
… não há sequer uma emoção da qual alguém porventura tenha participado que não esteja aí representada como num espelho. Ou, melhor, o Espírito Santo, aqui, extirpa da vida todas as tristezas, as dores, os temores, as dúvidas, as expectativas, as preocupações, as perplexidades, enfim, todas as emoções perturbadas com que a mente humana se agita. As demais partes da Escritura contêm os mandamentos, os quais Deus ordenou a seus servos que no-los anunciassem. Aqui, porém, os profetas mesmos, visto que nos são descritos falando com Deus e pondo a descoberto todos os seus mais íntimos pensamentos e afeições, convidam ou, melhor, atraem cada um de nós a fazer um exame de si mesmo individualmente, a fim de que nenhuma das muitas debilidades a que estamos sujeitos, e nenhum dos muitos vícios aos quais estamos jungidos, permaneça oculto. Com toda certeza é uma rara e singular vantagem quando todos os esconderijos se põem a descoberto e o coração é trazido à claridade e purgado da mais perniciosa das infecções – a hipocrisia!7
A partir disso, Calvino louva os Salmos por seu ensino concernente à oração cristã. Ele fala brilhantemente do privilégio e acesso que temos às cortes do Onipotente:
… pareceu-me ser indispensável mostrar… que este livro nos torna notório este privilégio, o qual é desejável acima de todos os demais, a saber: que não só nos é franqueado aquele familiar acesso à presença de Deus, mas também que temos permissão e nos é concedida a liberdade de pôr a descoberto diante dele aquelas nossas fraquezas que teríamos vergonha de confessar diante dos homens.8
Ele continua para falar da utilidade dos Salmos como um auxílio para a genuína e fervorosa oração, pois “é através de uma atenta leitura dessas composições inspiradas que os homens serão mais eficazmente despertados para a consciência de suas enfermidades, e, ao mesmo tempo, instruídos a buscar o antídoto para sua cura.”9 Isso é impressionante, visto que muitos vêem o cântico Reformado dos Salmos como um obstáculo à súplica real. “A verdadeira oração,” eles dizem, “é estimulada pelo cântico de hinos” (de composição humana). O grande Reformador tinha outra opinião: “Numa palavra, tudo quanto nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração, nos é ensinado neste livro.”10 O crente reconhecerá a verdade dessas palavras na conexão vital entre os Salmos (lidos e cantados) e a oração fervorosa:
A genuína e fervorosa oração provém, antes de tudo, de um real senso de nossa necessidade, e, em seguida, da fé nas promessas de Deus. É através de uma atenta leitura dessas composições inspiradas que os homens serão mais eficazmente despertados para a consciência de suas enfermidades, e, ao mesmo tempo, instruídos a buscar o antídoto para sua cura. Numa palavra, tudo quanto nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração, nos é ensinado neste livro. E não é só o caso de as promessas divinas nos serem apresentadas nele, mas às vezes se nos exibe, por assim dizer, uma posição entre os convites de Deus, por um lado, e os empedimentos da carne, por outro, envolvendo-nos e preparando-nos para a oração. Desse modo ensinando-nos – se porventura em qualquer tempo formos agitados por forte gama de dúvidas – a resistir e lutar contra tais empedimentos, até que a alma, libertada e desembaraçada de todos eles, se ponha diante de Deus; e não só isso, mas que, mesmo em meio às dúvidas, os temores e as apreensões, envidemos todo o nosso esforço em orar, até que experimentemos alguma consolação que venha acalmar e trazer refrigério às nossas mentes.11
Calvino identifica os Salmos como a melhor ajuda na oração: “a melhor e mais inerrante regra para guiar-nos nesse exercício não poder ser encontrada em outra parte senão nos Salmos” (p. 34). Sobre essa base, ela chega a uma conclusão importante:
Em suma, como invocar a Deus é um dos principais meios de garantir nossa segurança, e como a melhor e mais inerrante regra para guiar-nos nesse exercício não poder ser encontrada em outra parte senão nos Salmos, segue-se que em proporção à proficiência que uma pessoa haja alcançado em compreendê-los, terá também alcançado o conhecimento da mais importante parte da doutrina celestial.12
Se isso é verdade, devemos confessar o quanto precisamos dos Salmos! Podemos tê-los em excesso, se a oração cristã (que o Catecismo de Heidelberg, Dia do Senhor 45, chama de “a parte principal da gratidão, que Deus requer de nós”) é tão forte ou fraca quanto a nossa compreensão sincera dos Salmos? O raciocínio de Calvino aqui deveria nos estimular a ler, cantar e meditar nos Salmos. Está o Reformador de Genebra aqui identificando o problema com a oração em nosso país? A ignorância dos Salmos e a popularidade dos hinos modernos não-inspirados?
Sem dúvida, Calvino elogia os Salmos não somente com respeito à doutrina, piedade e oração cristã, mas também adoração. Além de regulamentar nossa adoração, os Salmos nos asseguram que Deus se deleita na adoração bíblica sincera.
Além disso, temos também aqui prescrito uma regra infalível a nos orientar sobre a maneira correta de oferecer a Deus o sacrifício de louvor, o qual ele declara ser a coisa mais preciosa aos seus olhos e o mais agradável dos aromas.13
Os Salmos não somente nos ensinam o caminho aceitável de louvar a Deus, mas também nos despertam nesse chamado pelo Espírito Santo.
… em suma, não há outro livro em que somos mais perfeitamente instruídos na correta maneira de louvar a Deus, ou em que somos mais poderosamente estimulados à realização desse sacro exercício.14
Assim, de acordo com Calvino, nunca haverá algo como um cântico “morto” de Salmos na igreja de Cristo!
O próprio Calvino entendeu as implicações da excelência dos Salmos com respeito ao conteúdo do cântico da igreja. Em seu Prefácio ao Saltério de Genebra (1543), ele argumenta:
Pois aquilo que S. Agostinho disse é verdadeiro, que ninguém é capaz de cantar algo digno de Deus, exceto o que recebemos dele. Portanto, quando procurarmos diligentemente, aqui e ali, não iremos encontrar cânticos melhores, por mais apropriados que sejam os seus propósitos, do que os Salmos de Davi, que o Espírito Santo falou e preparou através dele. Assim, cantando-os podemos estar seguros que nossas palavras vêm de Deus, como se ele cantasse em nós para sua própria exaltação.
Fonte: John Calvin on the Excellence of the Psalms
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