Prof. Herman Hanko
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto1
E, vendo as multidões, teve grande compaixão delas, porque andavam cansadas e desgarradas, como ovelhas que não têm pastor (Mt. 9:36).
Um leitor escreveu, “Em Mateus 9:36, 14:14, 15:32 e outros lugares, lemos que o Senhor Jesus vendo as multidões, ‘teve grande compaixão delas,’ inclusive que ele foi ‘movido de compaixão,’2 sugerindo uma emoção profundamente sentida. Freqüentemente tais passagens são usadas para ensinar uma compaixão e amor geral em Deus por todos sem exceção. Um periódico amplamente lido nos círculos evangélicos no Reino Unido nos diz que a descrição de Jesus em Mateus 9:35-36 ‘revela algo da motivação que levou Jesus a ensinar, pregar e curar em todas as cidades e vilarejos da Galiléia … Quando ele viu as pessoas cansadas e desgarradas como ovelhas sem pastor— lutando com o pecado e as dificuldades da vida – seu coração ficou comovido por eles. Ele foi tocado com os sentimentos das enfermidades deles. Estava preocupado com a alma deles e isso moveu-o a agir.” O questionador faz certa aplicação: “Essa é uma qualidade do ministério de Cristo que deveríamos imitar, mas raramente o fazemos … Como seguidores de Cristo, devemos ter um desejo profundo de ver homens e mulheres retirados de sua escuridão espiritual para um conhecimento de Cristo. Devemos ser movidos com compaixão pelos outros quais sejam suas necessidades, mas principalmente pela alma eterna deles.”
O leitor coloca essa questão diante de nós: Cristo tem compaixão (amor, longanimidade, misericórdia, graça) por todo aquele a quem o evangelho chega? A compaixão de Cristo deve ser interpretada como se ele desejasse salvar a todos, sem exceção? Essa é uma questão importante, pois uma compaixão ou amor geral de Cristo por todos os homens que expressa um desejo de salvar a todos é a heresia da oferta sincera do evangelho, que constitui o cerne do Pelagianismo, Semi-Pelagianismo, Arminianismo e Amiraldianismo, que sempre pragueja a igreja. Todas essas heresias foram condenadas pelos credos das igrejas Reformadas e Presbiterianas, os Cânones de Dordt e os Símbolos de Westminster.
Primeiro, devo declarar que a citação do período evangélico está correta: compaixão é uma emoção, e de fato uma “emoção profundamente sentida.” Embora devamos ser cuidados em não identificar as nossas emoções com as de Deus (ou Cristo), e apesar de qualquer referência às emoções divinas (das quais a Escritura está cheia) ser um antropomorfismo, Cristo reflete emoções divinas e humanas como Mediador, que uniu em si mesmo a natureza divina e humana. Afinal, Jesus chorou no túmulo de Lázaro, pois se entristeceu com a perda de um querido amigo— e a realidade da própria morte como a conseqüência terrível do pecado. Ele se entristeceu, embora soubesse que levantaria Lázaro dentre os mortos. A morte de um amigo feriu-o.
Compaixão é a “motivação que levou Jesus a ensinar, pregar e curar.” Seu coração comoveu-se por aqueles que lutavam com o pecado e as dificuldades da vida. Ele foi tocado com os sentimentos das enfermidades deles e preocupou-se com suas almas.
É também verdade que “devemos ter um desejo profundo de ver homens e mulheres retirados de sua escuridão espiritual para um conhecimento de Cristo. Devemos ser movidos com compaixão pelos outros quais sejam suas necessidades, mas principalmente pela alma eterna deles.” Paulo declara isso vigorosamente em Romanos 9:1-5, e Moisés expressa o mesmo sentimento profundo por Israel em Êxodo 32:31-32.
Todavia, o questionador está correto também quando diz: “Freqüentemente tais passagens são usadas para ensinar uma compaixão e amor geral em Deus por todos sem exceção”— e isso é heresia, não uma explicação do texto. Nem a explicação é difícil.
Sei que a palavra “orgânica” é freqüentemente mal-entendida, e sei que muitas pessoas na igreja hoje falham em entender a importância do conceito. Mas ele é crucial para um entendimento do texto, pois nos mostra como devemos entender e aplicar a compaixão de Jesus corretamente, à luz da graça particular, amor soberano (cf. Rm. 9:15) e justiça de Deus.
Um fazendeiro está muito triste (e pode ter compaixão) por seu campo de milho, após uma tempestade de granizo destruir cada uma das plantas— incluindo o joio. Ele não tem compaixão pelo joio, é claro, mas o campo é um organismo e seu propósito é o crescimento do milho.
Um homem pode ter compaixão por uma família cristã na qual o pai é um bêbado que espanca sua esposa e filhos sem misericórdia. Tal homem não tem compaixão do pai bêbado, mas da família pelo que eles sofrem, pois filhos amados de Deus estão ali. Quando a Holanda, a terra dos meus ancestrais, foi sobrepujada e cruelmente governada pela Alemanha Nazista, eu tive compaixão do país— não de cada pessoa individualmente, certamente não por aqueles que tinham traído seus compatriotas colaborando com o inimigo, mas eu sabia que o povo de Deus estava naquele país e sofreu cruelmente. E eu sou apenas um homem, que não sabe quem é e quem não é do povo de Deus. Eu tive compaixão do “organismo” da Holanda, pois o povo de Deus estava nele. Deus teve compaixão de Israel, pois a nação era o povo de Deus; não todos individualmente, mas os eleitos estavam ali e sofreram por causa de profetas, sacerdotes e reis ímpios. Assim, Cristo teve compaixão das multidões porque havia muitos que faziam parte do seu povo sofredor, que ele tinha vindo para salvar.
Calvino, em seu comentário sobre Mateus 9:36, interpreta a passagem toda como se referindo aos eleitos: “Mas devemos ouvir à voz de Cristo, que declara que onde não há trabalhadores não há pastores, e que aquelas ovelhas [isto é, os eleitos] estavam cansadas e desgarradas, pois não tinham sido acolhidas no aprisco de Deus pela doutrina do evangelho. Seu ser movido com compaixão prova que ele era o servo fiel do Pai em promover a salvação do seu povo, por quem se vestiu com a nossa carne. Agora que foi recebido no céu, ele não retém os mesmos sentimentos aos quais escolheu estar suscetível nessa vida mortal: todavia, não abandonou o cuidado pela sua igreja, mas procura suas ovelhas cansadas, ou antes, reúne seu rebanho que tem sido cruelmente perseguido e espalhado pelos lobos” (ênfase minha).
Fonte: Covenant Reformed News, December 2007, Volume XI, Issue 20.
1E-mail para contato: [email protected]. Traduzido em janeiro/2008.
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Versão King James.
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