Prof. Herman Hanko
Qualquer um que esteja inteirado com a história do desenvolvimento da doutrina, desde o tempo da Reforma Protestante, entenderá a importância da verdade do eterno pacto da graça de Deus. À medida que as verdades da Reforma Calvinista se desenvolveram na Inglaterra e na Europa em geral, a doutrina do pacto ocupou um lugar extremamente importante. Quase todo teólogo de notoriedade prestou atenção a ela.
Todavia, há uma característica significante sobre o desenvolvimento dessa doutrina: quase nunca os teólogos que prestaram atenção ao pacto foram capazes de harmonizar essa verdade com as verdades da graça soberana em geral e com a predestinação soberana em particular. Olhe para onde desejar entre os teólogos Presbiterianos e Reformados, e você encontrará uma tensão entre essas duas grandes verdades da Palavra de Deus. Se as verdades da graça soberana e da dupla predestinação foram enfatizadas (e há muitos que fizeram isso), a verdade do pacto foi pressionada num canto relativamente pequeno da sua teologia. Se, por outro lado, a ênfase central do teólogo residiu na doutrina do pacto (tais como, por exemplo, Cocceius), as verdades da graça soberana e da dupla predestinação receberam, na melhor das hipóteses, uma pequena atenção.
Por que isso? Estamos convencidos que a resposta para essa pergunta reside no fato que, quase sem exceção, a doutrina do pacto foi definida em termos de um acordo entre Deus e o homem. A essência do pacto foi definida em termos de tal acordo, e tanto o estabelecimento do pacto como sua continuação eram dependentes de estipulações, condições, provisões e promessas mútuas, que são inerentes num acordo. Aqui reside o problema. Um pacto que é um acordo é um pacto que é condicional. E um pacto que é condicional depende do homem para sua realização. Quando, em qualquer sentido, a obra da salvação depende do homem, consequentemente, as verdades da graça soberana sofrem prejuízo.
Isso não é o mesmo que dizer que esses teólogos ensinaram uma salvação que dependia do homem. Longe de ser verdade! Tanto na teologia inglesa como na européia em geral, houve muitos que defenderam vigorosa e consistentemente as verdades da graça soberana. Mas quando esse foi o caso, ou a doutrina do pacto não foi integrada no sistema completo de teologia apresentado por esses homens, ou um tipo de “feliz inconsistência” levou esses teólogos a sustentaram ambas as doutrinas. O fato é que um pacto condicional e uma graça soberana não podem ser harmonizados.
Esse problema está absolutamente relacionado à questão do batismo infantil. Se o pacto é um acordo, e portanto, condicional, as criancinhas não podem, no sentido mais profundo da palavra, pertencer ao pacto; elas são incapazes de cumprir as condições até que cheguem ao amadurecimento. Isso levou, durante o decorrer dos anos, a algumas amargas controvérsias sobre a questão do batismo infantil. Algumas vezes o debate entre os defensores do batismo infantil e aqueles que sustentam o batismo somente de crentes foi furioso. Esse debate se intensificou nas últimas décadas, provavelmente em parte porque muitos que sustentam uma posição “batista” têm, ao mesmo tempo, adotado um certo Calvinismo que enfatiza as doutrinas da graça. Eles são Batistas Calvinistas em distinção dos Batistas Arminianos. Regressando até Charles Spurgeon, e até mesmo antes, há uma corrente de pensamento entre os Batistas que defende as verdades centrais da graça soberana, enquanto continuando a negar o batismo infantil.
Esses “Batistas Calvinistas” ou “Reformados” incitaram uma renovação do debate, ou pelo menos geraram um grau de maior intensidade no debate; e isso porque aqueles que defendem a verdade do batismo infantil têm geralmente mantido que as idéias do batismo dos crentes e da graça soberana são mutuamente exclusivas, e que aqueles que sustentam essas duas posições sustentam uma visão de salvação contraditória. Os Batistas, certamente, repudiam esta acusação, e o debate continua.
Mas mesmo dentro dos círculos daqueles que sustentam o batismo infantil há controvérsias. Muitos que têm sido historicamente Reformados e que têm, a partir da posição Reformada deles, sustentado a doutrina do batismo infantil, não são mais capazes de defender sua posição contra a apologética energética e contundente dos Batistas. O resultado é que muitos Reformados que desejam se apegar às doutrinas da graça soberana têm sido influenciados por Batistas Reformados e têm aceitado essa posição. É nossa convicção que essa incapacidade de defender a doutrina do batismo infantil está fundamentada num conceito incorreto da verdade do pacto, a saber, que o pacto é um acordo com certas condições.
Ao fazer do pacto um acordo – no qual, obviamente, as criancinhas não podem entrar – o fundamento da verdade do batismo infantil é retirado. É verdade que várias soluções têm sido propostas para esse problema, como veremos mais tarde, mas essas soluções têm provado serem insatisfatórias e sem base bíblica. Muito do debate dentro dos círculos Reformados tem se centrado nesta pergunta: qual é o fundamento para o batismo infantil? As várias respostas que têm sido dados têm levado a muita controvérsia dentro dos círculos Reformados, controvérsias que não se acalmou completamente. A dificuldade é sempre que a controvérsia tem sido continuada dentro das limitações de um pacto definido como um acordo, bilateral e condicional. E a controvérsia não será resolvida até que essas idéias sejam enterradas de uma vez por todas e a idéia bíblica do pacto seja claramente apresentada.
Mas outro problema tem atrapalhado qualquer discussão do pacto. Refiro-me ao fato que muito das obras feitas em teologia em nossos dias é centrada no homem (antropocêntrica). A teologia começa com o homem e termina com o homem. Ela preocupa-se com o bem-estar e com a felicidade do homem. O homem permanece no centro de todo o pensamento da igreja, e ele se torna o objeto principal de consideração.
Embora seja certamente verdade que as Escrituras tratam com os homens, é também verdade que os homens não são a preocupação principal das Escrituras. A ênfase sobre o homem é na verdade uma forma de humanismo religioso, e tal humanismo, com todos os seus males terríveis, tem se tornado o objeto de reflexão teológica. Esse é um triste e perigoso erro. O homem não é a preocupação principal das Escrituras de forma alguma. Nem deveria ser a nossa. A ênfase da igreja sobre o homem não é a ênfase da Bíblia. As Escrituras têm a ver com Deus. As Escrituras começam com Deus e terminam com Deus. Tudo das Escrituras é a revelação de Deus e tem sua preocupação principal em Deus e sua glória. Deus é primeiro e supremo. Seja o que for que aconteça com o homem, ou seja dito do homem, isso é de importância secundária. Deus é o primeiro e o último. Todas as coisas começam com ele e terminam nele. Deus é central e transcendentalmente importante em qualquer discussão da verdade. Negamos essa ênfase principal ou ignoramos sua verdade para o nosso próprio perigo.
Quão frequentemente o apóstolo Paulo irrompeu numa poderosa e comovente doxologia de louvor, à medida que contemplava a verdade lhe revelada – uma doxologia de louvor ao Deus que é o único digno de todo louvor e glória? Após discutir, por exemplo, as grandes verdades da eleição e reprovação, especialmente como elas se aplicam aos judeus e gentios em Romanos 9-11, ele conclui tudo isso dizendo: “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (vs. 33-36).
E o que é verdade de Paulo é verdade de todos os autores das Escrituras. Davi, nos Salmos, parece como se não pudesse falar muito sobre a grande glória de Deus. Tomado em êxtase com a grandeza de Deus, ele chama os céus e a terra, o mar e as estrelas, e toda essa vasta criação a se unir a ele num cântico de louvor àquele que é grande e glorioso demais para ser louvado. O livro de Apocalipse amontoa doxologia sob doxologia e hino sob hino de louvor e glória àquele que é o único digno da honra de todo o universo. De fato, o todo da Escritura pode ser chamado corretamente de um belo e glorioso hino de louvor a Deus somente.
Isso deve estar claro em nossos corações e mentes quando tentamos resolver quaisquer dos problemas que nos confrontam ou determinar a verdade da Palavra de Deus. Talvez não haja nada tão difícil para o homem pecador do que perder a si mesmo de vista e ver somente a glória de Deus. Todavia, isso é essencial. E isso é preeminentemente verdade quanto à doutrina do pacto da graça.
E assim, em nossa discussão da verdade do pacto, devemos começar com Deus e terminar com Deus. Se fizermos isso, como as Escrituras fazem, obteremos uma perspectiva inteiramente diferente sobre essa verdade, e seremos capazes de ver claramente através da confusão sobre o pacto gerado por meio dos anos. Isso nos levará à Escritura, de forma que nossa discussão poderá ser baseada nas Escrituras e nas Escrituras somente. E tal estudo mostrará que a verdade do pacto se estende por todas as Escrituras. Não é um exagero dizer que, não somente o pacto da graça corre como um fio dourado por toda a Escritura, mas ele é de fato o tema dominante da Escritura. E se essa verdade é o tema dominante da Escritura, ela é também a verdade fundamental de toda a teologia. Tem havido teólogos no passado que desenvolveram suas teologias a partir do ponto de vista do pacto. Precisamos mencionar apenas homens tais como Cocceius e Witsius. Essa abordagem, cremos, é correta e bíblica. E isso tentaremos mostrar.
Para fazer isso, trataremos a verdade do pacto, não topicamente, mas historicamente. Embora esteja além do escopo deste livro tratar com o todo das Escrituras de Gênesis à Apocalipse, e tratar toda passagem nos apresentada, seguiremos contudo as linhas amplas do desenvolvimento histórico do pacto no Antigo Testamento para mostrar como a idéia do pacto foi revelada por Deus ao seu povo naquela dispensação, e então relacioná-la à nova para mostrar como ela foi toda cumprida em Cristo. Cremos que essa abordagem histórica nos ajudará a tornar a verdade do pacto de Deus clara.
Cremos que essa abordagem histórica, juntamente com uma ênfase sobre a centralidade de Deus e sua glória, trará as grandes verdades da graça soberana e o pacto eterno de Deus à perfeita harmonia bíblica.
Fonte: Introdução do excelente livro God’s Everlasting Covenant of Grace, Herman Hanko, Reformed Free Publishing Association, p. 1-5.
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto / [email protected]
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