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Deserção

 

Rev. Angus Stewart

 

Tradução: Rev. José Antônio

Parte I

I Co. 7:15 fala da obstinada deserção física de um crente por seu cônjuge descrente: “Mas, se o descrente quiser apartar-se, que se aparte; em tais casos, não fica sujeito à servidão nem o irmão, nem a irmã; Deus vos tem chamado à paz.

Muitos argumentam que “não fica sujeito à servidão,” que dizer que o crente apartado não está mais casado e então está livre para casar de novo. No entanto, existem insuperáveis problemas com esta visão.

Primeiro, o texto nada diz acerca de casar de novo, como tal. Casar de novo, enquanto o cônjuge está vivo, já foi estabelecido no contexto precedente. Duas e apenas duas opções são dadas para a pessoa divorciada: continuar separada ou reconciliar-se com seu cônjuge (v. 11). Outra coisa, ao fim deste grande capítulo acerca de cristãos solteiros ou casados, o apóstolo proíbe casar de novo enquanto o outro cônjuge estiver vivo (v. 39).

Segundo, Cristo ensina que o adultério é o único motivo para o divórcio: “Eu, porém, vos digo: qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a repudiada comete adultério” (Mt. 5:32; cf. 19:9). Deserção não é causa para divórcio, porque Cristo permitiu apenas um motivo e não dois.

Terceiro, esta opinião apresenta o casamento como escravidão; e, marido e mulher como dois escravos em servidão. Porque, se o cristão desertado está habilitado a casar de novo, a afirmação “não fica sujeito à servidão,” quer dizer que eles já não estão mais casados. Agora, a Bíblia ensina que casamento é a união de uma “só carne” entre um homem e uma mulher (Gn. 2:24). Um pacto de companheirismo (Ml. 2:14), que ilustra a aliança de Cristo com sua noiva, a Igreja (Ef. 5:22-33). Por conta do pecado, o casamento pode ser experimentado como um tipo de escravidão. Portanto, se esta experiência, e não o casamento em si, é considerado em I Co. 7:15 como “servidão,” então, o texto estaria dizendo apenas que maior é o sofrimento de viver com um descrente, do que sofrer seu abandono. Então o texto não estaria dizendo em si nada acerca de desfazer aliança matrimonial, muito menos dando permissão para casar de novo.

Quarto, a Bíblia ensina que Deus desfaz a aliança matrimonial apenas na morte. “A mulher está ligada enquanto vive o marido; contudo, se falecer o marido, fica livre para casar com quem quiser, mas somente no Senhor” (I Co. 7:39). “Ora, a mulher casada está ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive; mas, se o mesmo morrer, desobrigada ficará da lei conjugal. De sorte que será considerada adúltera se, vivendo ainda o marido, unir-se com outro homem; porém, se morrer o marido, estará livre da lei e não será adúltera se contrair novas núpcias” (Rm. 7:2-3).

A correta interpretação repousa no devido entendimento da expressão chave “não fica sujeito à servidão” (I Co. 7:15). Estes “sujeitos à servidão” são escravos e estão reduzidos à servidão. Crentes desertados nem sempre se fazem servos de seus respectivos cônjuges, nem se esforçam para reatar o relacionamento. Deste modo, “não ficam sujeitos à servidão” não quer dizer “não ligados a tua esposa.” Em inglês usamos palavras visual e sonoramente similares para “ligado” (bound) e “servidão” (bondage), porém, com significados bem diferentes. Os termos gregos que traduzimos “ligado” (vv. 27, 39) e “servidão’ (v. 15), também são diferentes. A Palavra de Deus nunca descreve um santo matrimônio como “servidão”. “Servidão” é escravidão, ao passo que “ligado” fala de uma relação, aqui, do casamento, a união de uma só carne (vv. 27, 39). A versões RSV e a NVI da Bíblia, talvez tenham contribuído para uma incorreta interpretação de I Co. 7:15, por não terem traduzido mais claramente este versículo.

Diante do “não fica sujeito à servidão,” o crente desertado é chamado à “paz” (v. 15). Ele ou ela não deve se sentir culpado, envergonhado ou ansioso. O crente desertado foi abandonado pelo cônjuge descrente por causa de sua fé, e não fez nada errado e não tem do que se culpar. O filho de Deus, em tais circunstâncias, deve aceitar e submeter-se à providência divina, não procurando desesperadamente por seu cônjuge em todos os lugares. Acima de tudo, o crente tem paz com Deus através da justiça de Jesus Cristo (Rm. 5:1), e o fruto do Espírito é a paz (Gl. 5:22). Deus chama à paz os cônjuges cristãos que estão desertados, porque ele, em Jesus Cristo, é nosso noivo fiel que nos ama e supre todas as nossas necessidades. Ele está sempre conosco e jamais nos desamparará.

No próximo artigo, consideraremos a tradição da Igreja na interpretação de I Co 7:15 e a deserção.

Parte II

Tendo mostrado no artigo anterior que I Co 7:15 não ensina que o crente desertado está livre para casar de novo, voltaremos nossa atenção para a tradição, na interpretação deste versículo. Aqui percebemos que diferimos dos Reformadores.

Contudo, de modo algum estamos sozinhos em nossa posição. Entre os comentaristas de I Coríntios que concordam conosco, estão homens de várias linhas teológicas: Bengel e Weiss (alemães), Godet (suíço), Grosheide (holandês), Albert Barnes e A. T. Robertson (americanos), Alfred Plummer, Gordon Fee e C. K. Barret (ingleses). Outros teólogos incluindo o congregacionalista Timothy Dwight e o batista W. E. Best.

Esta é também a posição histórica das Igrejas Anglicanas – como testemunhado no famoso voto matrimonial “até que a morte nos separe”—entre outras. Muitas igrejas Reformadas holandesas ao redor do mundo têm mantido também este testemunho. E mais, a Igreja Primitiva e Medieval foram quase unânimes em negar que a deserção possibilita casar de novo. O primeiro registro de dissidência do consenso católico foi por volta de 400 AD e o seguinte ocorreu cerca de 800 AD. Todos os sínodos da igreja, dos primeiros 1500 anos de sua existência, que trataram deste assunto, ensinaram apenas um motivo para o divórcio: adultério; e que casar de novo, enquanto o outro cônjuge está vivo é adultério.

Até onde pude descobrir, o ardente humanista, Erasmo, foi o primeiro em tempos modernos a quebrar o consenso católico-romano. Talvez os Reformadores, seguindo a opinião de Erasmo, reagiram em parte aos erros da visão católico-romana, de que o casamento é um sacramento. Em geral, aqueles que, erroneamente, vêem o pacto e, portanto, a aliança do casamento como um contrato, sejam exatamente aqueles que sustentam que ele é dissolvido pela deserção. Por outro lado, nós os que cremos que o pacto e, portanto, a aliança do casamento é a união ou elo de uma só carne (Gn. 2:24; Mt. 19:5-6), confessa que apenas Deus pode desfazer o pacto na morte (Rm. 7:2-3; I Co. 7:39).

Portanto, com base na Palavra de Deus, temos que discordar neste ponto da Confissão de Fé de Westminster (CFW), que permite novo casamento àqueles desertados pelo seu cônjuge e à “parte inocente” (CFW 24.5-6). Nosso apelo aqui a esta excelente Confissão é à própria Palavra de Deus: “O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja sentença nos devemos firmar não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura” (CFW 1.10).

Não somos os únicos a encontrar vulnerabilidade na CFW 24—”Do Casamento e Divórcio.” Muitos, se não a maioria das denominações presbiterianas discordam da CFW 24.4, que trata de graus de consangüinidade e incesto (e.g. O Manifesto das Igrejas Presbiterianas Reformadas da Irlanda, p. 70). Enquanto cremos que a Confissão equivoca ao permitir dois motivos para o divórcio, a saber, adultério e deserção—CFW 24.6, quando Cristo permitiu apenas um (adultério—Mt. 5:32; 19:3), muitos presbiterianos e reconstrucionistas criticam esta Confissão por outro lado, já que eles permitem o divórcio por diversos motivos (e.g., “incompatibilidade”), assim como muitos fariseus (cf. Mt. 19:3).

Enquanto a CFW 24.5 permite apenas à “parte inocente” casar de novo, muitas igrejas presbiterianas discordam de sua Confissão, permitindo também à “parte infiel” um novo casamento. Outras igrejas presbiterianas, ao contrário, não casam nenhuma pessoa divorciada, seja “parte inocente” ou não, por conta da dificuldade em descobrir a origem da ofensa. Eles acreditam, pois, que a CFW 24.5 é impraticável.

John Murray, notável teólogo presbiteriano, aponta uma brecha na CFW 24.6. Este artigo da Confissão afirma que “uma deserção tão obstinada que não possa ser remediada nem pela Igreja nem pelo magistrado civil” dissolve o casamento e permite, conseqüentemente, casar de novo. Contudo, mesmo que I Co. 7:15 permitisse casar de novo após a deserção—o que não é verdade—isto seria apenas ao crente que tivesse desertado por decisão de seu cônjuge descrente. A CFW 24.6 permitiria que crentes ou descrentes desertados por cristãos professos casassem de novo, que é contrário até mesmo à interpretação errônea de I Co. 7:15.

A CFW 24.5 procura justificar o casar de novo da “parte inocente”, argumentando que isto é “como se a parte ofensiva estivesse morta”. Porém, a Escritura não reconhece qualquer conceito que permita casar de novo. A “parte ofensiva” está viva, caso contrário, não haveria necessidade para divórcio. Rm. 7:2-3—que a CFW 24.5 cita—e I Co. 7:39 afirmam que a pessoa está comprometida em matrimônio, a menos que o cônjuge dela esteja real e fisicamente “morto.” Casar de novo enquanto o outro cônjuge ainda está vivo não é legítimo (CFW 24.5), isso é adultério: “Ora, a mulher casada está ligada pela lei ao marido, enquanto ele vive; mas, se o mesmo morrer, desobrigada ficará da lei conjugal. De sorte que será considerada adúltera se, vivendo ainda o marido, unir-se com outro homem; porém, se morrer o marido, estará livre da lei e não será adúltera se contrair novas núpcias” (Rm. 7:2-3).

Parte III

É instrutivo notar que aqueles que defendem “novo casamento” para crentes desertados e “partes inocentes”, têm encontrado dificuldade para sustentar tal argumento. Lutero ao permitir a bigamia de Filipe de Hesse, criou uma situação escandalosa na cristandade de então. Um protestante italiano separou-se de sua esposa católico-romana, bem como de seus filhos, mudando para Genebra. Ele, um “crente”, deixou-a, uma descrente, ainda assim Calvino o permitiu casar enquanto vivia a esposa dele. Os Reformadores, pois, não tiveram a palavra final na doutrina do matrimônio.

Tem aumentado em nossa “geração má e adúltera” (Mt. 16:4), igrejas cedendo bastante no tocante a casamento, divórcio e novo casamento. Congregações têm sido lideradas por ministros, presbíteros e diáconos divorciados, que casaram de novo. Pessoas divorciadas e em novo casamento vêm a Ceia do Senhor, e algumas vezes partilham à mesa na mesma congregação ou denominação. Em muitos lugares, vários motivos de divórcio são aceitos e não apenas o adultério. A permissão para casar de novo apenas para a “parte inocente”, além de anti-bíblica (Rm. 7:23; I Co. 7:39), é muitas vezes instável. Se a “parte inocente” está livre para casar de novo é porque o casamento em si está dissolvido. E se o casamento está dissolvido pela “parte inocente,” então é porque deve estar dissolvido também para a “parte infiel.” Porque então não pode a “parte infiel” casar-se, novamente? Muitas congregações e concílios não estão habilitados a sustentar este argumento. Mas talvez ainda mais persuasiva seja a percepção de que o ensino e prática da doutrina bíblica do casamento, divórcio e segundo casamento poderá significar grande perda de membros e uma profunda luta espiritual.

Esta abertura que se tem dado a doutrina do casamento, divórcio e novo casamento, tem crescido assustadoramente. É tempo para indivíduos, famílias e igrejas abraçarem a doutrina do casamento, ensinada por Jesus Cristo, o Noivo e Cabeça da Igreja.

No ataque à doutrina bíblica do casamento, divórcio e novo casamento, a grande verdade da inabalável aliança entre Cristo e sua Igreja tem sido atacada, a primeira refletindo na última (Ef. 5:22-33). O Pacto entre Cristo e sua Igreja é a eterna aliança, fruto da irresistível graça do Deus Poderoso, operada em nós pelo Espírito Santo. Nosso fraco pecado não pode quebrar esta aliança. Aliás, nem mesmo a morte. Porque Deus é imortal e nossa morte é uma passagem para a glória e a morte de Cristo é nossa redenção, santificação e glorificação (vv. 25-27).

Fonte (original): Covenant Reformed News, Vol. 11, nº. 3-5.

(Para material Reformado adicional em Português, por favor, clique aqui)

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