Herman Hoeksema
“Porque pela graça sois salvos.” (Efésios 2.8)
O assunto sobre o qual são discutidos diversos aspectos nas páginas seguintes não deve precisar de introdução aos crentes em nosso Senhor Jesus Cristo. Que somos salvos pela graça, não pelas obras, e que, portanto, a salvação é obra de Deus, de nenhum sábio do homem, é uma verdade que diz respeito à essência do Evangelho. “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus” (Efésios 2.8). A doutrina da salvação pela graça é uma das verdades fundamentais da fé cristã da qual o conhecimento verdadeiro e o correto entendimento são de grande importância para a Igreja de Cristo no mundo e para o crente individualmente. Aquele que erra neste ponto deve ter necessariamente uma concepção errada de todo o resto da doutrina cristã e corrompe a verdade sobre Deus e o homem, concernente ao pecado e redenção, e a respeito de Cristo e da Igreja. Além disso, é um assunto de grande importância prática para o crente, um que nunca deixa de despertar seu interesse. Ele percebe que se trata de seu único conforto na vida e na morte: ou ele é salvo pela graça apenas, ou ele precisa morrer. Assim, ele nunca se cansa de ouvir o evangelho da salvação pela graça soberana proclamada e exposta a ele em todas as riquezas de suas implicações. E conforme ele cresce no conhecimento desta verdade, ele cresce na graça do Senhor Jesus.
Não admira, então, que a partir do período mais antigo da história da igreja do Novo Testamento este tema ocupou um lugar central. Foi o tema de milhares de sermões. Muitos volumes foram escritos para expor e defender esta verdade. É o tema de milhares de hinos. Muitas vezes foi motivo de afiada controvérsia. Hoje em dia se pode ouvir da salvação pela graça em sermões e músicas, do púlpito e ao ar livre, literalmente todos os dias. E se, talvez, possa parecer quase impossível dizer qualquer coisa sobre um assunto tão amplamente esgotado que já não tenha sido dito centenas de vezes antes, nós podemos nos confortar com o pensamento de que pode ser possível, pelo menos, recordar algumas verdades bem antigas em conexão com o nosso assunto e que tenham sido esquecidas ou negadas em tempos modernos.
Nosso tema é, naturalmente, rico em significado e apresenta vários aspectos. Dizer que nós somos salvos pela graça expressa a verdade de que a salvação pertence ao Senhor. Isso deve ser enfatizado desde o início. Pois a graça é de Deus, e Deus é livre e soberano. Sermos salvo pela graça, então, significa que a graça é a única fonte, a única explicação, a razão última e o fundamento da nossa salvação, a causa eficiente de tudo o que está implícito na obra de nossa redenção e libertação do pecado e da morte. Somos salvos pela graça somente, sem o trabalho ou a cooperação do homem, ou nós não somos salvos pela graça em absoluto. Assim, aquele que fala da salvação pela graça, deve compreender que está falando de uma obra completamente divina. Mas todas as obras de Deus são eternas. Assim, a salvação pela graça tem sua origem na eternidade, e não se pode tratar adequadamente o tema da graça sem considerar a verdade fundamental da eleição divina e soberana: somos escolhidos pela graça. Pois Deus “nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor” (Efésios 1. 3, 4). A graça é soberana. Ela é divina e, portanto, eterna. Das profundezas inescrutáveis da eternidade jorra todas as bênçãos espirituais que nos levanta do fundo escuro do pecado e da morte para a glória da vida eterna: as bênçãos da expiação e da reconciliação, da redenção e da libertação, da regeneração e do chamado, de justificação e santificação, do perdão dos pecados e da adoção para os filhos de Deus, da preservação e da perseverança, da ressurreição dos mortos e da glorificação final. Todas essas bênçãos da salvação são de pura graça: pois “isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece” (Romanos 9.16). E todos estes diferentes aspectos da salvação pela graça demandam a nossa consideração.
No entanto, podemos fazer bem, em primeiro lugar, ao considerarmos a questão mais geral: “o que é a salvação?” Esta questão não é de forma alguma supérflua. Pois, por um lado, a nossa resposta a esta questão deve necessariamente depender de nossa concepção da parte que a graça tem em nossa salvação e, por outro lado, especialmente nos tempos modernos, a verdade sobre a salvação é distorcida e corrompida em mais de uma maneira.
A salvação não é o mesmo que reforma ou melhoria do homem e do mundo; nada tem em comum com a noção moderna de construção do caráter. Essa concepção modernista reconhece, de fato, que o homem não é o que ele deveria ser. Há algo de errado com ele e com o mundo que ele está construindo. Especialmente em nossos dias, agora que toda a estrutura imponente da cultura e civilização humana corre o risco de colapso, isto é profundamente sentido. No entanto, mantém-se que o homem não é inerentemente corrupto. Ele é fundamentalmente bom. Mas ele precisa de reforma. Temos de nos aplicar à reforma do homem, à construção de seu caráter, assim como à melhoria do seu ambiente. E nesse esforço nobre temos de ter Jesus como nosso exemplo e transformar os Seus ensinamentos, especialmente ao Sermão da Montanha, em nosso programa de reforma. Se o homem apenas aprender a seguir os Seus passos, e aplicar os Seus ensinamentos em toda a sua vida e relacionamentos, ele será salvo. Ele, então, aprenderá a reconhecer que, como Jesus, ele também é filho de Deus; que Deus é o Pai amoroso de todos, e todos os homens são irmãos. E assim ele vai se tornar uma boa e pacifica criatura, capaz de fazer do presente mundo um reino de Deus no qual habitará a justiça. É desnecessário dizer que, em tal ponto de vista da salvação, não há espaço para a graça. A salvação é obra do homem orgulhoso, não de Deus. E é completamente supérfluo provar que esta filosofia humana nada tem em comum com o evangelho bíblico da salvação.
No entanto, não é apenas nos círculos modernistas que alguém encontra uma apresentação pervertida da verdade da salvação. Pelo contrário, aqueles que pregam ostensivamente o evangelho de Cristo, mas ao mesmo tempo apresentam a questão da salvação como algo cuja realização em última análise depende da vontade do homem, também distorcem a doutrina da graça soberana. Salvação, de acordo com esta visão, é como um presente que está tudo preparado e que é oferecido livre e gratuitamente, mas que alguém poderá recusar ou aceitar. Ou ela é como um amável convite para alguma festa ou banquete, ao qual qualquer um pode educadamente aceitar ou recusar. Assim ao pecador é oferecida a salvação, que consiste principalmente em escapar do inferno e entrar no céu depois desta vida, na condição de que ele aceite a Cristo. Esta salvação é toda preparada para o pecador. Em si mesmo, ele está condenado, digno de morte eterna. Mas, Cristo morreu por todos os pecadores, e obteve o mérito do perdão dos pecados, justificação e glória eterna para todos.
Até agora é tudo de graça.
E que o evangelho é pregado aos pecadores e essa redenção gloriosa lhes é oferecida livremente, isso, também, é de graça.
Mas é neste ponto que a salvação como uma obra da graça e poder divino termina. Pois para além da redenção obtida pelos méritos de Cristo e da salvação oferecida, a graça não é soberana e eficaz: é impotente para salvar e realmente libertar do domínio do pecado e da morte, exceto por consentimento do pecador. Se o pecador apenas aceitar a salvação que lhe é oferecida, se ele disser: “Eu aceito Cristo como meu Salvador pessoal”, tudo estará bem com ele, e a graça pode avançar; mas se ele for recalcitrante, e teimosamente se recusar o sério convite para ser salvo, a graça nada pode fazer com ele. Muitos pregadores não hesitam aberta e corajosamente em declarar que Deus é impotente para salvar o pecador a menos que este dê o seu consentimento, e que Cristo não pode fazer mais do que Ele fez a menos que o pecador lhe permita prosseguir com a Sua obra de salvação. Jesus está disposto a salvar, mas Sua vontade deve sofrer um naufrágio na rocha da contrária e refratária vontade do homem. Ele está à porta do coração do pecador e bate, mas a chave da porta está no interior, e o Salvador não pode entrar, a menos que o pecador abra a porta.
Daí surge aquela forma muito comum de pregar que é erroneamente chamada de evangélica e que sempre atinge o seu clímax no bem conhecido e extremamente sensacionalista “chamado ao altar”. Digo erroneamente, pois a “pregação evangélica” é a pregação do evangelho, e a verdade do evangelho nunca apresenta um Deus sem poder ou um Cristo impotente para salvar. Visto que a graça de Deus é dependente da escolha da vontade do pecador, segue-se que a persuasão da linguagem humana, da voz do pregador, pedindo e implorando, pode ajudá-lo a fazer a escolha certa e induzi-lo a deixar Jesus entrar em seu coração!
Assim Cristo é travestido!
0h, com certeza, a salvação é a libertação do inferno e da condenação. “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna; mas aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece” (João 3.36). Mas, antes de tudo, a salvação é muito mais que a simples fuga do castigo e do inferno e um cheque no banco do céu que será descontado após a morte. É um prodígio do Todo-Poderoso, o qual vivifica os mortos e chama as coisas que não são como se fossem (Romanos 4.17). É uma obra na qual Deus se revelou a nós na “sobreexcelente grandeza do seu poder sobre nós, os que cremos, operação da força do seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dentre os mortos, e pondo-o à sua direita nos céus” (Efésios 1.19, 20). É uma obra não menos divina e ainda mais gloriosa do que a obra da criação. Tudo o que é necessário para fazer do pecador, morto em pecado, cheio de inimizade contra Deus, amaldiçoando o Todo-Poderoso e levantando o punho rebelde à face do Senhor do céu e da terra, andando nas trevas e odiando a luz – para fazer de tal pecador um filho justo e santo de Deus, humildemente pedindo que Deus queira que ele queira, cheio do amor de Deus, e para sempre cantando Seus louvores, e colocar, esse pecador, portanto, resgatado e liberto, em comunhão de vida com a gloriosa companhia de todos os pecadores redimidos e glorificados, para que juntos constituam uma igreja, uma bela casa de Deus, um templo santo no Senhor, para o louvor da glória da Sua graça no Amado – tudo isso pertence à obra, à poderosa obra de Deus que é chamada de salvação!
Em segundo lugar, a salvação pela graça significa que é uma obra exclusivamente divina, absolutamente livre e soberana, na qual o homem não tem parte alguma e que em nenhum sentido a escolha dependerá da vontade do homem. Assim como a obra da criação foi apenas de Deus, que Ele realizou sem a cooperação da criatura, assim a obra da salvação é exclusivamente obra de Deus, na qual o homem não tem nenhuma parte. Assim como Adão viveu e foi uma criatura ativa, e não ao ou antes de ser criado, mas por virtude desta obra maravilhosa de Deus, assim o pecador vive, e torna-se positivamente ativo, de modo que ele quer ser salvo e abraçar a Cristo, não em cooperação com Deus, que quer salvá-lo, mas como resultado das maravilhas da graça feita sobre ele. A salvação pela graça significa que a graça está sempre em primeiro lugar. Verdade, “quem quiser pode vir”, mas a vontade de vir não é proveniente da graça, mas subsequente a ela, como seu fruto.
Considere que das profundezas da escuridão e da morte a salvação liberta o homem e para que altura da vida e da glória o exalta, e julgue por si mesmo se, em qualquer fase particular desta obra maravilhosa de Deus, o homem poderia ser uma parte colaboradora de Deus. Popularmente, a salvação tem sido frequentemente definida como o prodígio de Deus pelo qual Ele liberta o pecador do mal maior e faz dele participante do bem maior. Mas o que é o maior mal do que a graça liberta o pecador? Ouça as palavras da Escritura em Efésios 2.1-3: “E vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados, em que noutro tempo andastes segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe das potestades do ar, do espírito que agora opera nos filhos da desobediência. Entre os quais todos nós também antes andávamos nos desejos da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensamentos; e éramos por natureza filhos da ira, como os outros também”. Esse é o mal do qual a graça nos salva!
E o que significa que, à parte da graça, estamos mortos em delitos e pecados?
Significa exatamente o que diz; que por nossos pecados, nós somos, por natureza, assim como mortos para Deus e à justiça, para toda boa obra, como o cadáver no túmulo está morto a toda atividade de qualquer tipo. Isso significa que, à parte da graça, somos totalmente incapazes de fazer qualquer bem, ou até mesmo de pensar ou desejar qualquer coisa que seja agradável a Deus. Estamos atados por dentro com algemas inquebráveis de trevas e corrupção. Somos escravos do pecado, escravos dispostos a ter a certeza, mas escravos que amam as trevas e não a luz. E esta morte espiritual, ética, é a própria ira de Deus sobre nós: a punição pelo pecado. Pois somos filhos da ira desde o nosso nascimento, culpados e condenáveis por causa da transgressão de Adão. E só podemos aumentar diariamente a nossa culpa e a nossa perdição.
Essa é a nossa miserável situação! Existe uma dívida que não pode ser paga, nem temos o interesse de pagá-la. Existe um poder de corrupção do qual não podemos nem libertaremos a nós mesmos. Há ira e condenação da qual nós nunca poderemos escapar, nem termos o interesse de, ou tentaremos fugir, pois somos inimigos de Deus, e a mente carnal é morte!
Em que a profundidade de graça horrível miséria se encontra o pecador.
Você imagina, então, que ele é capaz ou está disposto a cooperar com Deus para sua própria salvação, ou que qualquer apelo emocional e sentimental de um pregador irá convencê-lo a desejar buscar a salvação em Cristo? Eu lhe digo que não. Antes de a graça tomar conta desse pecador e levantá-lo dentre os mortos, ele sempre se recusará a aceitar a salvação oferecida e vai preferir a morte à vida, o pecado à justiça, o diabo a Deus! Ele deve ser salvo pela graça de um milagre divino!
Considere, também, até que alturas de glória a graça salva o pecador.
Ele é feito participante do bem maior! Mas o que é o bem maior? É a vida eterna! Sim, mas o que é a vida eterna? É uma espécie de estado carnalmente concebido de bem-aventurança eterna em um belo lugar chamado céu? Deus nos livre! 0h, com certeza, o céu é abençoado e bonito. Mas é assim, principalmente, porque Deus está lá, e Cristo está lá, e os santos em Cristo estão lá. E a bem-aventurança do céu consiste no fato de que é a casa de Deus, e que nessa casa habitemos em comunhão com o Deus vivo, uma comunhão que é mais íntima do que o primeiro homem, Adão, já provou: pois ela tem seu centro na Palavra encarnada de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo! Ser perfeitos filhos de Deus, Deus, conhecer como somos conhecidos, justos como Ele é justo, santos como Ele é santo, amando e amados para sempre, vê-Lo face a face, e ter o nosso prazer em fazer a Sua vontade e guardar Seus preceitos, amando-o com todo o nosso coração e mente e alma e força na perfeição e glória celeste – isso é a bem-aventurança do céu, e é a altura da glória a qual a graça nos eleva em Jesus Cristo, nosso Senhor! Mas você imagina que possa haver qualquer tipo de cooperação da parte do pecador miserável que nós acabamos de descrever para chegar a essa altura de perfeição? Ou você diria que o pecador que é um inimigo de Deus, embora anseie pela perfeita comunhão com Deus, que aquele que ama a escuridão é capaz de ansiar por esse estado de perfeição e de luz eterna? Eu digo que não. Ele é salvo por graça e pela graça somente, como um prodígio Daquele que ressuscita os mortos e chama as coisas que não são como se fossem!
Salvos pela graça! Libertos da ira, culpa, condenação, corrupção e morte – tudo pela graça! Vestidos com justiça, santidade, vida e glória – somente pela graça! Traduzidos à luz, da morte para a vida, da vergonha à glória, do inferno ao céu – tudo pelo poder da graça maravilhosa de Deus! E tudo por causa do amor eterno, soberano, daquele que escolheu as coisas que não são para reduzir a nada as coisas que são, para que nenhuma carne se glorie em Sua presença!
Fonte: Wonder of Grace, Herman Hoeksema, Reformed Free Publishing Association, chapter 1, pp. 9-15.
Capítulo 7 da As Maravilhas da Graça
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