Rev. Herman Hoeksema
O tema deste panfleto não é um tema fácil, mas é de grande importância para aqueles que amam a verdade reformada. Uma pessoa reformada pensa e vive teologicamente. Para ela, é de extrema importância conhecer o Seu Deus da maneira como Ele se revelou pelas Suas obras e Sua Palavra. O reformado entende perfeitamente que não é capaz de compreender plenamente a Deus, porque Deus é infinito, Seu Ser é insondável e Suas obras sempre nos enchem com uma admiração que leva à adoração. Mas ainda assim, ele deseja conhecer mais e mais o seu Deus, e também compreender aquilo que Deus revelou sobre Si.
Deus é um. Portanto, deve haver unidade em Sua revelação, unidade de pensamento e propósito em todas as Suas obras. E, portanto, um filho de Deus, especialmente um filho de Deus reformado, não pode descansar até que aprenda a enxergar e entender esta unidade de pensamento e propósito. É a partir deste ponto de vista que queremos refletir sobre o lugar da reprovação na pregação do Evangelho.
Mas é claro, prosseguiremos na discussão deste tema a partir do pressuposto de que estamos falando com pessoas reformadas. Portanto, não falaremos agora sobre a eleição ou reprovação intrinsecamente. Na verdade, nem mesmo faremos uma tentativa de defender a tese de que a reprovação deve ter um lugar na pregação do Evangelho. Nós presumimos isso. Ao invés disso, tentaremos delinear a unidade das obras de Deus, e em seguida, nos perguntarmos:Qual é o lugar da reprovação nessa unidade?
Mencionamos que vamos considerar o lugar da reprovação na pregação do Evangelho.
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Se a reprovação deve ser pregada, qual é o seu lugar?
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Como ela deve ser apresentada?
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Qual é sua relação com a eleição e a toda a verdade?
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Com que ênfase ela deve ser apresentada?
É óbvio que na pregação ou no ensino da verdade, os vários aspectos da verdade devem ser mostrados claramente, revelando a relação que eles tem entre si. Se eu descrevesse uma obra de um artista, e tentasse descrever as partes que estão na tela de forma individual, sem relacioná-las ao todo, essa obra-prima seria arruinada por minha descrição. Ou se eu tentasse retratar a minha impressão do todo dando enfâse demais no plano de fundo, ao ponto deste tornar-se o mais evidente, eu não faria jus à obra do artista. Assim também acontece com relação à obra da salvação. Pode-se muito bem, de vez em quando, pregar sobre eleição, e mais tarde sobre a reprovação sem expôr essas verdades corretamente, simplesmente porque elas não foram pregadas em sua relação mútua e em conexão com toda a verdade da Escritura.
Então, a pergunta é:
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Qual é o lugar da reprovação na pregação do Evangelho?
No entanto, naturalmente esta pergunta está inseparavelmente ligada a outra:
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Qual é o lugar certo da reprovação em todo o escopo da verdade?
Ambos, eleição e reprovação, são partes da predestinação; e esta, mais uma vez, faz parte do conselho de Deus, no sentido pleno da palavra, concernente a todas as coisas. Portanto, a fim de determinar o lugar da reprovação nas obras de Deus e na pregação do Evangelho, devemos, em primeiro lugar, rever todo o plano de Deus sobre todas as coisas. Em segundo lugar, temos de responder de que maneira a predestinação aparece em todo este conselho. E, finalmente, é preciso determinar a relação que há entre reprovação e eleição, a medida em que isso for possível à luz da Escritura.
Discutiremos os seguintes pontos enquanto tratamos o nosso tema “O Lugar da Reprovação na pregação do Evangelho“:
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O decreto de Deus e a Eleição
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Eleição e Reprovação
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A Reprovação na Pregação
O Decreto de Deus e a Eleição
A questão que nos confronta é:
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Qual é a relação entre a eleição e o decreto de Deus sobre todas as coisas?
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Qual é o lugar da eleição na totalidade do conselho de Deus?
Para sermos capazes de descobrir isso, temos que, necessariamente, considerar o conselho de Deus em geral, mesmo que seja apenas de passagem. O conselho de Deus em seu sentido amplo é o eterno propósito e vontade de Deus sobre todas as coisas criadas, homem e anjos, lua e estrelas, criação animada e inanimada.
Este decreto ou conselho de Deus é eterno, uma vez que nunca houve um começo no pensamentos de Deus concernente à criação. Esses pensamentos são tão eternos quanto o próprio Deus. E este conselho de Deus é inclusivo. Desde antes da fundação do mundo, todas as coisas estavam com Ele em Seus pensamentos divinos, não apenas como Ele os fez no princípio, mas também como elas deveriam se desenrolar ao longo da história. Deus, desde antes da fundação do mundo, decretou em Seu eterno conselho como as coisas serão na eternidade. Ele determinou o fim de todas as coisas desde o início. Deus determinou como Ele iria criar todas as coisas no início, tendo em vista a consumação de todas as coisas. A criação foi planejada tendo em vista a recriação, geração a regeneração, o início tendo em vista o fim. Não só isso, mas com vistas a este fim, Deus, o Senhor, planejou o curso dos acontecimentos, de modo que tudo em mútuo trabalho e desenvolvimento devem cooperar juntamente para alcançar Seu propósito eterno. Nunca nos esqueçamos que as obras de Deus são uma unidade, e que toda criatura está organicamente relacionada com todas as demais criaturas. Tudo é planejado com vistas no todo. Logo, Deus determinou tudo de tal maneira em Seu conselho, que o fim de todas as coisas fosse a realização daquilo que Ele havia planejado em Si mesmo.
Portanto, nada pode ser excluído deste conselho. Chuva e seca, anos frutíferos e infrutíferos, saúde e doença, guerra e paz, sim, os animais do campo e os pardais dos telhados devem servir a esse propósito e finalidade para o qual Deus determinou em Si mesmo. Em conexão a isso, também devemos incluir os males: o pecado, a dor, a morte e tudo que se relaciona a eles. Nunca devemos conceber a idéia de que o conselho de Deus permite ajustes ou acontecimentos que não foram incluídos. Pelo contrário, Deus decidiu o fim, e Ele soberanamente determinou a forma e os meios que levassem a esse fim, incluindo o pecado e a morte.
A este ponto de nossa discussão, podemos fixar que o objetivo de Deus, o qual Ele determinou em Si mesmo, é que todas as obras de Suas mãos mostrem plenamente o Seu louvor e testemunhem a magnificência do Seu nome. O Senhor de fato fez todas as coisas para que cumpram os Seus desígnios, até mesmo o ímpio para o dia do mal (Pv 16:4). Pois Ele é Deus e Ele apenas, e Ele faz toda a Sua boa vontade.
Mas aí vem a pergunta:
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Como Deus concebeu este fim para o qual todas as coisas em Seu conselho se direcionam?
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Como será a unidade de todas as coisas, a consumação de todas as coisas por meio das quais o nome de Deus será mais plenamente glorificado e Suas virtudes mais gloriosamente reveladas?
Note que é desta maneira que a pergunta deveria ser colocada. A pergunta que é frequentemente feita é: De que maneira Deus é glorificado nas obras individuais de Suas mãos? Mas não é dada atenção suficiente para a relação destas obras umas para com as outras.
Vamos pegar novamente o exemplo de uma obra de arte. Naturalmente, eu posso ficar na frente de um belo edifício e focar minha atenção nas partes individuais do edifício. Eu posso observar as belas pedras, as janelas coloridas, as altas abóbadas, os arcos ogivais e qualquer outra coisa que possa haver. Se foi um arquiteto que planejou todo o edifício, logo eu posso, apontando as partes separadamente, elogiar a capacidade do arquiteto. Isso também pode ser feito com as obras de Deus. Este é, de fato, o método que é normalmente utilizado.
Agora, é verdade que Deus é glorificado na maravilhosa e onipotente obra que Ele fez no início. Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a Sua obra, e toda a criação fala de Seu eterno poder e divindade. Com sabedoria o Senhor fez tudo. Assim, também, eu posso falar da obra da salvação e, como subdivisões desta, falar separadamente de Sua graciosa eleição e de Sua justa reprovação. Assim como eu posso louvar a Deus pela revelação de Seu soberano amor na eleição, eu, ao mesmo tempo posso dizer que na reprovação Ele revela a Sua justiça e ira, bem como seu grande poder.
No entanto, você imediatamente sente que não podemos deixar por isso mesmo. Havia naquele prédio, se o arquiteto realmente era hábil, uma idéia central, e com vistas nesta idéia as demais partes foram determinadas. Se eu apenas focar nas partes individuais, o resultado é duplo. Primeiro, eu não captei a idéia central do todo por meio da qual a maravilhosa obra veio a existir. Segundo, eu não fiz jus às partes, pela simples razão de que eu não mostrei o seu lugar e propósito com relação ao todo. Assim é com as obras de Deus. Deus é um só. Sua obra é uma. Uma magnífica idéia governa tudo. Logo, se eu desejo glorificar a Deus em Sua obra, eu preciso dar atenção não apenas às partes, mas primeiro ao todo, e em seguida, mostrar como cada parte está relacionada ao todo.
Por exemplo, com respeito à reprovação, eu posso dizer que Deus soberanamente predestinou alguns para destruição a fim de glorificar a Si mesmo; mas se eu não disser mais nada, vou ter apresentado Deus como um tirano que destrói criaturas com o único propósito de glorificar a Si mesmo. E alguém dirá a si mesmo: “Esta é uma palavra dura, quem o pode ouví-la?” Certamente Deus é soberano e Ele faz o que deseja com aquilo que é Seu e ninguém pode dizer: “Que fazes?“, mas isso não tira o pensamento que surge repetidamente em nossos corações: “Por que o Deus todo-sábio fez isso?” Portanto devemos nos perguntar:
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Qual é o objetivo, a consumação?
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Qual é o resultado?
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O que Deus determinou em Si mesmo?
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Qual é a finalidade de todas as obras de Suas mãos?
Então temos de tomar como ponto de partida o que lemos em Efésios 1:9-10:
“E nos revelou o mistério da sua vontade, de acordo com o seu bom propósito que ele estabeleceu em Cristo, isto é, de fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensação da plenitude dos tempos.“
Não temos como explicar de forma plena essa bela e abrangente passagem agora. Será suficiente tratarmos os principais pontos do texto a medida em que estes sejam necessários para lidar com nosso tema. Em primeiro lugar, é claro que o apóstolo aqui nos revela o que Deus, o Senhor, propôs em Si mesmo, em Seu conselho, concernente ao propósito eterno de todas as suas obras. Não há dúvida alguma de que o texto trata da boa vontade eterna de Deus. Ele propusera em Si mesmo, desde antes da fundação do mundo, como as coisas deveriam ser em sua consumação. Dificilmente se pode negar que o apóstolo festeja falando de todas as coisas, toda a criação, a plenitude de tudo o que Deus fez. Ele enfaticamente diz todas as coisas, celestiais e terrenas. Eu sei que esta passagem tem sido explicada como se referisse à igreja militante e triunfante. No entanto, isto entra em conflito com o claro significado da palavra. Aqui, a discussão é concernente à todas as coisas. Podemos, então, entender isto como sendo:
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O que Deus, desde antes da fundação do mundo, determinou em Si mesmo com respeito à presente criação?
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Qual será a sua consumação?
Nós respondemos primeiramente que, de acordo com o texto, a criação inteira será uma unidade intimamente relacionada e harmoniosa. Certamente todas as criaturas que estão no céu e na terra serão reunidas sob um só cabeça, a fim de que toda a criação forme uma unidade perfeita. Não foi assim no princípio. Nesse tempo não havia um cabeça de toda a criação. Havia uma criação terrena e uma celestial. Certamente a criação terrena estava unida sob seu cabeça terreno. Adão era rei e cabeça. Mas esse reinado não incluia o que está no céu; pois Adão, enquanto estava no primeiro paraíso, foi feito um pouco menor do que os anjos. Mas até mesmo este reinado foi devastado pelo pecado. Adão caiu. Ele quebrou o pacto, separando a si mesmo juntamente com a criação terrena do Deus do pacto. As criaturas estão agora mutuamente divididas e separadas. Agora é homem contra homem, povo contra povo, planta contra planta, animal contra animal. O mundo animal está mutuamente dividido, bem como separado do homem. A harmonia da criação terrena foi quebrada. Tal divisão também aconteceu no céu entre os anjos de Deus. Mas esta passagem do apóstolo nos ensina que era o propósito de Deus, desde antes da fundação do mundo, unir todas as coisas novamente em uma unidade mais elevada, que incluísse o todo, tanto as coisas celestiais quanto as terrenas.
Em segundo lugar, nós respondemos, à luz do texto, que Deus havia determinado tudo isso em Si mesmo, a fim de unir todas as coisas sob o governo de Cristo como rei. Cristo é que se tornará o cabeça da nova criação. Adão não deve ser tal cabeça. Isto inclui que o princípio governante da nova criação será que Cristo é o Senhor de todos. Toda a criação tem a sua harmoniosa unidade n’Ele. A medida que Cristo for exaltado acima de Adão, a criação futura brilhará em resplandecente glória sobre a criação presente. Isto não significa apenas que todas as criaturas serão reunidas e unidas em perfeita unidade com o cabeça, Cristo, mas também que a criação será mais intimamente unida a Deus. Pois certamente Cristo é Emanuel, Deus conosco, o Verbo que se fez carne. N’Ele se encontra as duas naturezas divina e humana, Criador e criatura na mais próxima união entre si. Em Cristo, Deus se une mais intimamente a nós por meio do vínculo do pacto. E em Cristo, o tabernáculo de Deus estará entre nós; e através de nós todas as coisas serão incluídas neste tabernáculo de Deus. A criação glorificada estará eternamente perto do coração de Deus em Cristo Jesus.
Assim considerado, o conselho da predestinação (mais especificamente, eleição, com o seu complemento necessário, a reprovação) é o coração do decreto de Deus. Esse conselho da predestinação determina o lugar que as criaturas racionais de Deus, os anjos e os homens, assumirão nesta unidade eterna de todas as coisas. E entre as criaturas racionais, o homem que foi feito à imagem de Deus, e cuja natureza foi assumida por Cristo, ocupa o lugar principal. Quando todas as obras de Deus atingirem a sua consumação, então o homem, em Cristo Jesus, terá a mais estreita comunhão com Deus, e viverá em uma comunhão mais íntima com Ele. Por esta razão, é impossível colocar o decreto da predestinação na mesma linha do decreto da providência. Ambos formam uma unidade, para que a predestinação assuma o lugar central em torno do qual gira todo o resto, e no qual tudo tem a sua unidade, de acordo com o conselho onisciente de Deus. E essa unidade é formada de tal maneira que o decreto da eleição assume o lugar principal na predestinação, não apenas no sentido de que a eleição é o lado positivo e a reprovação o lado negativo, mas também que a reprovação serve a eleição.
Abordaremos melhor este assunto em breve. No entanto, já se pode dizer que, uma vez que era a determinação de Deus, na plenitude dos tempos, fazer convergir todas as coisas em Cristo Jesus, é lógico que a preocupação principal de Deus não é com os que eternamente não farão parte da criação glorificada. Quando se constrói um edifício, a principal preocupação não são as pedras que nunca se encaixam na estrutura concluída, apesar de terem sido formadas como pedras. Assim é no conselho de Deus. A eleição é e continua a ser o principal objetivo, ao qual a reprovação é subordinada para qualquer finalidade que possa ter.
Assim compreendido, a eleição é a parte do conselho de Deus em que Ele, desde antes da fundação do mundo, determinou que os indivíduos terão um lugar glorioso na unidade final de todas as coisas. A eleição pode ser definida como a nomeação de Deus de indivíduos para a glória da nova e eterna criação. A eleição é de fato discriminante. Isso implica que Deus escolheu alguns em distinção de outros. No entanto isto é, acima de tudo, predestinação. E, portanto, a eleição dentro desta, deve ser definida como o decreto de Deus, através do qual Ele, soberanamente e livremente, por pura graça, sem mérito, escolheu dar a alguns um lugar com Cristo na glória eterna. O objetivo primário é que Deus seja glorificado. O motivo, é o mais profundo amor. Ele desejava glorificar Seus filhos com uma glória a qual eles jamais poderiam obter por meio do primeiro Adão.
Além disso, a eleição é pessoal. Deus conhece o Seus pelo nome desde a eternidade. Mas a eleição deve ser considerada organicamente. Pois, embora a eleição lide com pessoas e seja pessoal, é também verdade que os eleitos formam uma unidade em Cristo, uma herança gloriosa de Deus, na qual cada um tem seu próprio lugar. Os eleitos constituem o corpo de Cristo, no qual cada membro é escolhido para um determinado destino pessoal, tendo o seu próprio lugar no corpo.
Eleição e Reprovação
Agora estamos preparados para dar uma resposta à pergunta:
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Qual é o lugar da reprovação nesse plano?
Deus reprovou bem como escolheu. Por si só, a reprovação é o decreto de Deus no qual Ele determinou, tão soberanamente quanto na eleição, que alguns indivíduos não entrariam na glória eterna, mas que seriam destinados à destruição. Assim é que se deve ser apresentado. Sei que parece mais suave dizer que Deus decidiu abandonar os demais em seus próprios pecados e ruína. Esta é a maneira como é formulado em nossos Cânones, no qual o Sínodo de Dort adotou o ponto de vista infralapsariano, contrário aos desejos e protestos de Gomarus.
No entanto, é fato que esta é uma forma delicada de apresentar o assunto. Podemos fechar os nossos olhos para o problema e nos recusar a buscar uma resposta, mas o problema permanece. Perguntas inevitavelmente surgem:
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Como essas pessoas caem no pecado em que Deus permitiu que elas caíssem?
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Por que Deus as deixou neste pecado e miséria quando Ele poderia tê-las salvo?
Eu compreendo perfeitamente que todas essas questões possivelmente não podem ser respondidas. No entanto, também é verdade que, ao fecharmos nossos olhos para os problemas que surgem, não somos capazes de encontrar uma solução.
Além do mais, a Escritura certamente ensina mais do que isso. O oleiro faz com o barro o que lhe agrada, e ninguém pode negar-lhe o direito de formar da mesma massa um vaso para honra e outro vaso para desonra (Rm 9:21). Certamente, aqui somos ensinados mais do que isso, Deus permite que algo caia onde isso caiu. Os vasos para desonra também são feitos por Ele de acordo com o Seu desígnio. Logo, preferimos dizer que a reprovação é o decreto de Deus pelo qual Ele soberanamente destinou alguns à destruição. Pois, certamente, a condenação terá por base o pecado e a culpa do réprobo, mas nunca como se essa reprovação acontecesse por causa de um pecado previsto. A reprovação, assim como a eleição, é completamente e soberanamente livre.
No entanto, no presente momento, não estamos muito preocupados com a reprovação como tal, mas sim sua relação com a eleição. A pergunta é:
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Qual é a relação da primeira com a segunda?
Ou melhor, a pergunta mais significativa:
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Por que Deus reprova?
Você diz: “Para a glória do Seu nome“. Correto. Estamos de acordo. Deus, o Senhor fez todas as coisas para atender aos Seus desígnios, até o ímpio para o dia do mal. Nós confirmamos isso. Mas então surge a pergunta:
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Será que Deus, o Senhor, é mais glorificado tendo reprovado alguns, do que Ele seria se tivesse salvo todos?
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Admitindo que a condenação dos réprobos O glorifica eternamente, a Sua honra não seria maior se Ele tivesse salvo todos?
Mais uma vez você diz: “Não, pois desta forma a Sua justa indignação jamais seria revelada“. Mas será que isso é verdade? Nós certamente concordamos que na destruição dos réprobos Deus revela Sua justa ira e é assim glorificado. Mas, esta ira não foi suficientemente revelada no sofrimento de Cristo?
A todo momento a mesma pergunta nos confronta:
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Por que Deus condenou alguns?
Para encontrar uma resposta devemos nos colocar diante da pergunta:
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Qual é a relação entre a eleição e a reprovação?
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Elas formam um dualismo?
Se há um dualismo entre elas, logo, há um dualismo em Deus também; então Deus é um Deus que possui um grandíssimo amor e ao mesmo tempo um profundo ódio. Isso certamente é impossível. Deus não anseia pela destruição dos réprobos da mesma forma que Ele se deleita na salvação e glorificação do Seu povo escolhido. Por isso afirmamos que, em resposta a esta importantíssima pergunta, a Escritura apresenta o seguinte:
A reprovação existe a fim de que a eleição possa ser realizada; a reprovação é necessária para trazer os escolhidos para a glória que Deus, em Seu infinito amor, designou a eles.
Deus amou o Seu povo com um infinito amor. Em Seu imenso amor Ele determinou levá-los à glória que Ele tinha designado a eles em Cristo. Se Ele assim determinou que os eleitos alcançassem essa maior glória e fossem levados a ela, era necessário que Ele (falando reverentemente) reprovasse alguns. Não porque todos não poderiam encontrar um lugar na glória, pois desta forma surgiria a pergunta: Por que Deus decretou criar mais pessoas do que seria possível adimitir no organismo do corpo de Cristo?, mas, porque aqueles que serão em breve condenados devem, por um tempo, servir à salvação dos eleitos, sendo isso uma forma antitética. Neste sentido, a reprovação é uma necessidade divina. Neste sentido, os réprobos existem por causa dos eleitos. Eles são, em certo sentido, o preço, o resgate, que Deus paga pela grandiosa glória de Seus filhos.
Certamente você perguntará se podemos provar isso. Nós pensamos que sim. Em primeiro lugar, gostaríamos de chamar sua atenção ao fato de que essa idéia não é estranha à revelação geral de Deus na natureza e na história. Você pode comprovar isso na vida das nações e das pessoas em particular. Em muitos dos monumentos feitos em honra aos nossos soldados que perderam suas vidas no campo de batalha, pode-se ler a inscrição:
“Eles deram suas vidas para que pudéssemos viver.”
Aqui está uma figura da eleição e reprovação da forma como estamos agora considerando-a. Quantas vezes milhares perdem a vida no campo de batalha a fim de que outros possam viver. Eles não apenas dão suas vidas, mas isso lhes é exigido. Eles foram condenados para que a nação pudesse viver.
E não é diferente na vida dos indivíduos, ou pessoas individuais e animais. A mãe dá a vida a seu filho, não raramente à custa de sua própria. É quase sempre verdade que uma geração vive e morre para dar lugar à outra. Há espécies de animais em que o macho morre depois do acasalamento. O macho é arrematado (condenado) para dar vida ao mais jovem.
De acordo com a Escritura, não é diferente no reino vegetal. Quando um agricultor lança a semente em seu campo, ele semeia muito mais do que precisa. Quando a semente cai na terra e morre, aparecem não só os grãos de trigo, para os quais a a semente foi plantada, mas também o caule, a palha e até mesmo o joio. Sem o caule e o joio o grão jamais poderia ter germinado e amadurecido. O caule e o joio servem o grão, a semente. Embora ambos em breve serão queimados pelo fogo a fim de que o grão possa ser recolhido no celeiro. Aqui também encontramos eleição e reprovação, de maneira tal que o último serve o primeiro, e é necessário para ele.
No entanto, isso não é tudo. Não encontramos uma figura dessa verdade apenas na revelação geral de Deus, mas ela também é literalmente provada na Escritura, em diversos textos bem como nos relatos históricos. O Senhor declara a Israel em Isaías 43:4:
“Visto que você é precioso e honrado à minha vista, e porque eu o amo, darei homens em seu lugar, e nações em troca de sua vida.“
É verdade que esta passagem se refere ao que o Senhor fez por Israel no passado. Mas também é verdade que essa passagem refere-se ao eterno conselho da boa vontade de Deus. Porque, verdadeiramente Deus amou o Seu povo desde a eternidade. Em Seu conselho eles são preciosos aos Seus olhos. Portanto, o texto refere-se ao amor eterno de Deus. Neste eterno amor, Ele desejou glorificar e exaltar o Seu povo e conduzí-los à maior glória possível em Sua herança eterna. O texto diz que, a fim de alcançar tal propósito, Deus daria nações em troca de Seu povo escolhido. Porque Ele amava o Seu povo, outros tiveram que pagar pela salvação de Israel com suas próprias vidas. A história de Israel comprova isso uma vez por outra. O faraó e seu exército pereceram. Eles deviam servir Israel temporariamente, mas Deus não hesitou em dar nações em troca da vida de Seu povo. Quando Israel entra em Canaã, as pessoas são novamente dadas no lugar de Israel. Isto ocorreu por meio dos pecados desses povos. Eles chegaram ao limite da iniquidade no momento em que Israel havia de entrar no descanso, e são destruídos para dar lugar a Israel. Logo, esta figura encontra-se em toda a história de Israel. A Babilônia também serviu para um propósito, que era o de castigar Jerusalém. No entanto, por causa disso ela se torna pronta para o julgamento. E assim que a Babilônia serve como meio para realizar o conselho de Deus, ela é destruída.
O mesmo é, literalmente, apresentado em Provérbios 11:8:
“O justo é salvo das tribulações, e estas são transferidas para o ímpio.“
A idéia aqui é que o ímpio serve para manter os justos longe de tribulações, a fim de glorificá-los. E tendo feito isso, eles perecem por causa de seus pecados. Ainda mais forte é a linguagem de Provérbios 21:18:
“O ímpio serve de resgate para o justo, e o infiel, para o homem íntegro.“
Aqui, novamente, temos a idéia de que Deus dá o ímpio como um resgate, o qual Ele paga para glorificar os justos.
Naturalmente, isso não diminui a outra verdade que na reprovação Deus também revela Sua justiça, e é glorificado ao revelar Seu santo nome. Certamente estes réprobos não servem a salvação dos eleitos por vontade própria, mas como ímpios, e apesar de si mesmos. Por esta razão, eles tornam-se culpados por servir a este propósito, e são dignos de condenação. Assim, ao servir o propósito de Deus, tornam-se prontos para a destruição. Assim como joio amadurece para a destruição enquanto serve o grão, da mesma maneira o ímpio tornar-se maduro (pronto), para a perdição enquanto servem os eleitos.
Mais evidente do que isto é o caso do nosso próprio Salvador. Certamente para a glorificação dos eleitos, o sangue do Salvador teve de ser derramado. Mas se esse sangue tinha de ser derramado, deveria haver um mundo perverso e depravado para derramá-lo. Deveria haver um Judas que o traisse; deveria haver um Sinédrio que o condenasse; deveria haver uma poderosa e ímpia autoridade romana que por fim, O levasse à cruz. Em tudo isso, os réprobos servem para a glorificação dos eleitos. Sem aquele mundo ímpio, a cruz não poderia ser imaginada. Mas a situação também é tal, que o mundo, ao crucificar o Salvador, por meio do qual serviu para a glorificação dos eleitos, torna-se maduro para a destruição.
Assim como era antes, também é agora. E assim será até o fim do mundo. E quando o fim vier, os ímpios serão justamente sentenciados e condenados por causa do pecado, tendo servido para o propósito de Deus. Os eleitos serão eternamente glorificados com o Salvador na herança dos santos. Portanto, podemos concluir que, na unidade dos desígnios de Deus, a reprovação inevitavelmente serve a eleição. O amor de Deus para com o Seu povo reina de forma suprema em Seu conselho. Para revelar e efetuar plenamente este amor, Ele traz à existência povos que no fim serão condenados. A reprovação é a inevitável contrapartida antitética da eleição.
A Reprovação na Pregação
Com base nisso, podemos determinar o lugar da reprovação na pregação do Evangelho, e, quanto a isso, o seu lugar em toda representação da verdade. Certamente a reprovação deve ser pregada. Isso decorre do fato de que Deus a revelou, e que certamente todo o conselho de Deus deve ser pregado. Nós podemos entender esta necessidade. Sem a pregação da reprovação, não somente a eleição, e sua contrapartida, deixará de ser pregada, mas também não se poderá fazer jus ao amor eletivo de Deus. O grandioso amor de Deus sempre deverá ser a nossa principal preocupação. Esse amor se manifesta nisto, que Ele deu Seu Filho unigênito, para que todo aquele que n’Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. No entanto, isso se torna ainda mais glorioso se entendermos que para alcançar este amor, Deus deu nações em troca de Seu povo, e deu o ímpio como resgate pelo justo.
Em segundo lugar, certamente deve tornar-se evidente na pregação, que Deus é soberano, mesmo quando uma parte que Ele formou anteriormente se perca. Quando vemos um fazendeiro arrancando as pequenas plantas que ele havia plantado anteriormente, isso parece triste e insensato para nós, até que entendamos que isso tem uma finalidade. Assim também é com a obra de Deus. A não ser que consideremos a questão do ponto de vista de Deus, e ao menos que sejamos iluminados pelo Seu sábio conselho, a história do mundo parece uma grande lástima, um grande tormento. Pois, embora Deus seja o vencedor final e por fim venha a glorificar o Seu povo, a verdade é que muitas criaturas que Ele havia formado anteriormente, se perdem eternamente por causa das astutas ciladas do diabo e dos poderes do pecado e da morte. Mas não será assim se apresentarmos a reprovação adequadamente. Aí sim, Deus permanecerá soberano. Aí sim, não haverá nenhum acidente. Pois, tudo o que Deus faz é bem feito, visto que Ele faz todas as coisas com sabedoria.
Nós não devemos dar nenhum espaço à idéia de que Deus quer salvar a todos, inclusive alguns que já estão perdidos. O conselho de Deus subsistirá, e Ele permanecerá soberano – soberano no que diz respeito à vida eterna, e ao mesmo tempo soberano no que diz respeito à perdição eterna. Portanto a reprovação deve ser pregada; pois Deus deve permanecer soberano até mesmo sobre o reino das trevas. A reprovação deve ser pregada à congregação a partir do ponto de vista da eleição. Os crentes devem entender que a salvação não é do que corre, nem do que quer, mas de Deus, que se compadece. De acordo com a boa vontade de Deus, eles receberam um lugar na consumação de todas as coisas. Isso significa muito mais para nós, quando entendemos que Deus poderia, soberanamente, ter nos reprovado. Não deve haver dúvida de que a reprovação deve ser pregada, se o que prega deseja manjer a Palavra da verdade corretamente.
Assim, torna-se evidente o quanto a reprovação deveria ser pregada, e que lugar ela deveria receber na pregação do Evangelho. Em primeiro lugar, torna-se evidente que não devemos dar sermonetes com respeito a reprovação. Isto também é verdade sobre a eleição. Isto é verdade sobre todos os aspectos da verdade. Aquele que, ocasionalmente, prega apenas sobre a eleição, sem relacioná-la de alguma maneira a reprovação, não está pregando a eleição. Isto é ainda mais verdadeiro sobre a reprovação, a qual é a contrapartida antitética da eleição. Ela pertence a eleição. Ela só pode ser compreendida à luz da eleição. Ela deve ser apresentada em conformidade com sua relação à eleição.É também evidente que, ao pregarmos sobre eleição e reprovação, não devemos colocar esse dois temas dualisticamente um contra o outro. Eles não estão no mesmo nível. Eles não são duas metades iguais de uma mesma coisa, mas juntos formam uma unidade. A reprovação deve ser sempre apresentada como sendo subordinada à eleição, como servindo-a de acordo com o conselho de Deus.
Disto se segue que a reprovação não deveria ser pregada com certo deleite na doutrina. Aquele que está sempre pregando sobre a reprovação não apenas mostra que ele é severo e cruel, mas também que ele não entendeu a obra de nosso Senhor. O amor de Deus continua sendo o pensamento central. Ele escolheu em Seu eterno amor; e, por causa desse amor, Ele também reprovou. Logo, toda obra de Deus torna-se uma linda unidade orgânica. Desta forma, Ele é, e continua sendo Deus, e Ele apenas. Assim, no fim de tudo, nós exclamamos em adoração com o apóstolo:
“Ó profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Porque d’Ele, por Ele e para Ele são todas as coisas! A ele seja glória para sempre!“
Deus irá em breve fazer novas todas as coisas. Então, Ele revelará plenamente o Seu eterno e glorioso reino a todos os Seus filhos. Então, o reino de Cristo, incluindo Sua igreja escolhida, será inseparavelmente unido a Deus. E será notório que essa divina e bela obra é tão maravilhosa e tão gloriosa que não apenas valeu duplamente a pena todo o sofrimento do tempo presente, mas também que ela é valiosa o suficiente para dar nações como resgate por ela. A glória do Senhor, por meio de Jesus Cristo, resplandecerá com brilho celeste sobre todas as obras de suas mãos, para sempre!
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Tradução | Thiago McHertt
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