Prof. Herman Hanko
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto / [email protected]
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“E se o profeta for enganado, e falar alguma coisa, eu, o SENHOR, terei enganado esse profeta; e estenderei a minha mão contra ele, e destruí-lo-ei do meio do meu povo Israel” (Ezequiel 14:9).
Eu citei apenas um versículo dos mencionados pelo questionador. A questão inteira menciona vários textos e apresenta-se da seguinte forma (o leitor é encorajado a verificar os outros textos): “1Reis 22:20-23 e os versículos que ensinam verdades similares – tais como Ezequiel 14:9, Jeremias 4:10 e 20:7, II Tessalonicenses 2:11-12—parecem indicar que Deus não simplesmente permite o mal existir, mas de alguma forma o causa. Eu creio nisso, mas também creio que Deus não pode ser o autor do pecado, visto que ele é santo e não há trevas nele (1João 1:5), e ele é muito puro até mesmo para ‘contemplar o mal’ (Habacuque 1:13). Você pode explicar como estas coisas podem ser harmonizadas?”
Esta pergunta, embora crucialmente importante, é também uma pergunta que tem sido discutida na igreja por muitos séculos. Podem-se descobrir na história da igreja aqueles que têm defendido ambas as posições delineadas nos comentários do questionador. A pergunta é basicamente esta: Qual é a relação entre a soberana execução da vontade de Deus e o pecado do qual o homem é culpado?
As duas respostas que têm sido dadas à pergunta da soberania de Deus e o pecado são: 1) Deus causa o pecado, ou, 2) Deus permite o pecado. Ambas as respostas são sugeridas na questão citada acima: “… Deus não simplesmente permite o mal existir, mas de alguma forma o causa …”
É importante observar que estas duas respostas têm sido dadas por pessoas que são genuinamente Reformadas e Bíblicas em sua teologia, que não têm nada a ver com o erro Arminiano, e que crêem de todo o seu coração que Deus é absolutamente soberano em toda a obra da salvação. Portanto, devemos ser cuidadosos para que não acusemos uns aos outros de “heresia.” Este não é o caso. O que nos importuna é a palavra correta para descrever a relação entre um Deus soberano e o pecado do homem – pecado pelo qual o homem é responsável.
Enquanto os textos mencionados na pergunta tenham a ver especialmente com o pecado de engano por parte de falsos profetas—um engano que o próprio Deus alega ter realizado nestes profetas—a questão mais ampla é sobre todo pecado. O pecado é um falta do homem. O homem irá justamente para o inferno por causa do seu pecado—a menos que seu pecado tenha sido pago na cruz de Cristo. Deus é soberano. Deus permanece soberano. Deus é soberano sobre o pecado.
Que este desentendimento sobre esta questão têm estado presente nos círculos Reformados e Presbiterianos é evidente a partir do fato de que as confissões Reformadas diferem levemente sobre esta questão da Confissão de Westminster. Analisaremos brevemente esta diferença.
Embora, até onde eu sei (alguém pode me corrigir sobre isso), as confissões Reformadas não usem a palavra “permissão” para definir a relação de Deus com o pecado, todavia, estas confissões implicam que “permissão” seria um termo aceitável. Esta afirmação é provada pela definição de reprovação usada pelas confissões. Tanto os Cânones de Dordt como a Confissão de Fé Belga, ao definir reprovação, falam de Deus “deixando” o homem em seu pecado.
Os Cânones usam esta expressão em I:15, por exemplo: “Para mostrar sua justiça, decidiu deixá-los em seus próprios caminhos e debaixo do seu justo julgamento.” A Confissão de Fé Belga diz (Art. 16): “… deixa os demais na queda e perdição, em que eles mesmos se lançaram.” A idéia é que Deus permite o pecado entrar no mundo, e uma vez ali, ele “deixa” certas pessoas neste pecado sem resgatá-las, como ele faz com os seus eleitos.
Aqueles que prepararam os Cânones e a Confissão de Fé Belga usaram esta linguagem porque (como o nosso questionador também sugeriu) eles estavam com medo de fazer de Deus o autor do pecado. O Sínodo de Dordt afirma fortemente a doutrina da reprovação, mas define-a como um “deixar” as pessoas em pecado, e continua para dizer: “Este é o decreto da reprovação, o qual não torna Deus o autor do pecado (tal pensamento é blasfêmia!) …”
A Confissão de Westminster, por outro lado, diz que a palavra “permissão” é inadequada: “A onipotência, a sabedoria inescrutável e a infinita bondade de Deus, de tal maneira se manifestam na sua providência, que esta se estende até a primeira queda e a todos os outros pecados dos anjos e dos homens, e isto não por uma mera permissão, mas por uma permissão tal que, para os seus próprios e santos desígnios, sábia e poderosamente os limita, e regula e governa …” (V, 4). Os teólogos de Westminster eram da convicção que a palavra “permissão” não era satisfatória para descrever a relação de Deus com o pecado; não porque a palavra “permissão” fosse herética, mas porque ela é muito fraca.
Mas nosso espaço já foi preenchido, e teremos que esperar para completar esta discussão até a próxima edição do “Boletim.”
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“E se o profeta for enganado, e falar alguma coisa, eu, o SENHOR, terei enganado esse profeta; e estenderei a minha mão contra ele, e destruí-lo-ei do meio do meu povo Israel” (Ezequiel 14:9).
Eu citei apenas um versículo dos mencionados pelo questionador. A questão inteira menciona vários textos e apresenta-se da seguinte forma (o leitor é encorajado a verificar os outros textos): “I Reis 22:20-23 e os versículos que ensinam verdades similares—tais como Ezequiel 14:9, Jeremias 4:10 e 20:7, II Tessalonicenses 2:11-12—parecem indicar que Deus não simplesmente permite o mal existir, mas de alguma forma o causa. Eu creio nisso, mas também creio que Deus não pode ser o autor do pecado, visto que ele é santo e não há trevas nele (1João 1:5), e ele é muito puro até mesmo para ‘contemplar o mal’ (Habacuque 1:13). Você pode explicar como estas coisas podem ser harmonizadas?”
Na última edição (a qual seria bom reler), mencionei que respostas diferentes têm sido dadas por pessoas Reformadas à questão da relação entre a soberania de Deus e o pecado. Eu citei as Três Formas de Unidade e a Confissão de Westminster para demonstrar este ponto. Agora, devemos continuar a discussão.
Eu poderia definir a diferença dessa forma: Aqueles que falam de vontade permissiva de Deus com respeito ao pecado estão temerosos de fazer de Deus o autor do pecado—algo que os Cânones de Dort chamam de “blasfêmia.” Os teólogos de Westminster, ao considerar a palavra “permissiva” inadequada para descrever a relação entre a vontade de Deus e o pecado, estavam temerosos de fazer injustiça à soberania de Deus. Ambos estão corretos em seus temores. É de fato errado sugerir ou implicar de alguma forma que Deus é o autor do pecado. E é de fato errado ensinar de alguma forma ou maneira que Deus é menos do que soberano—até mesmo em sua relação com o pecado.
A Escritura tem muitos textos que colocam a doutrina da soberania de Deus diante dos nossos olhos para que possamos negá-la. Devemos mencionar apenas alguns aqui. Esses são adicionais aos textos que o questionador sugeriu. Davi confessa que Deus mandou Simei amaldiçoar Davi (II Samuel 16:10). Deus moveu Davi a levantar o censo de Israel, embora Davi tenha sido punido por seu pecado (II Samuel 24:1). Isaías compara a relação de Deus com o ímpio como a relação de alguém que maneja um machado, que usa uma serra ou maneja uma vara (Isaías 10:15-16). O crime mais hediondo de todos os séculos, a crucificação do nosso Senhor, foi feito de acordo com o conselho determinado e pré-conhecimento de Deus (Atos 2:23, 4:27-28). Quase não há fim para passagens semelhantes a estas.
Poderíamos observar de passagem que João Calvino não estava temeroso de falar de Deus como a “causa” do pecado, embora ele insistisse que devemos distinguir cuidadosamente entre causas primárias e causas secundárias, e que Deus sempre realiza sua vontade através de causas secundárias. Eu penso que isto pode ser útil também nesta discussão. Em todo pecado, a vontade do homem sempre é uma causa secundária. Nunca o homem faz algo sem ser como um ato de sua própria vontade. Nisto reside sua responsabilidade.
Sempre me pareceu que a palavra “permissão,” quando usada para descrever a relação de Deus com o pecado, não resolve realmente nenhum problema. Eu sei que o motivo para se usar a palavra é evitar qualquer impressão de fazer de Deus o autor do pecado. E isto deve estar longe das nossas mentes. Mas o ensino de que Deus “permite” o pecado realmente nos ajuda? Eu duvido. Suponha que eu esteja numa loja de ferragens olhando os martelos, e eu veja um homem perto de mim, colocando um martelo em seu casaco e saindo da loja sem pagá-lo. Eu “permiti” que ele roubasse. Eu escapo da culpabilidade do roubo por permanecer ali, sem fazer nada, quando eu estava numa posição de impedi-lo de roubar? Este não é o caso.
Assim, se Deus (e eu falo como um homem) permanece olhando os homens pecar, capaz de impedir, mas sem fazer nada para deter o pecado, mas apenas permitindo-o, isto também, aparte de qualquer outra consideração, não resolveria o problema. Eu não vejo como um apelo à vontade permissiva de Deus possa fazer algo que um apelo direto à soberania de Deus não possa.
Devemos manter a soberania absoluta de Deus sobre todas as cosias, incluindo o pecado. Este é o ensino claro da Escritura; e se podemos fazer algo que a Escritura não atribua a Deus, criamos um poder no universo fora do controle de Deus. Se tal poder existe, um poder sobre o qual Deus não tem controle, então criamos um dualismo: um dualismo de dois poderes, Deus e o pecado; um dualismo de dois seres eternos, Deus e o mal; um dualismo de dois poderes independentes, Deus e a impiedade. Tal dualismo é impossível e intolerável, pois ele é uma limitação sobre Deus que destrói Deus.
Devemos manter que Deus determinou o pecado em seu conselho eterno, que Deus controla e dirige o pecado em seu controle e direção soberano de todas as coisas, e que Deus também usa o pecado pare cumprir o seu propósito. O primeiro Paraíso é o estágio sobre o qual, sob o governo soberano de Deus, o drama do pecado e da graça é representado. A queda serve a esse propósito, o propósito da revelação de Deus em Jesus Cristo.
Aparentemente teremos que usar outro artigo para “explicar como estas coisas podem ser harmonizadas” – como o questionador tão claramente colocou.
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“E se o profeta for enganado, e falar alguma coisa, eu, o SENHOR, terei enganado esse profeta; e estenderei a minha mão contra ele, e destruí-lo-ei do meio do meu povo Israel” (Ezequiel 14:9).
Eu citei apenas um versículo dos mencionados pelo questionador. A questão inteira menciona vários textos e apresenta-se da seguinte forma (o leitor é encorajado a verificar os outros textos): “I Reis 22:20-23 e os versículos que ensinam verdades similares—tais como Ezequiel 14:9, Jeremias 4:10 e 20:7, II Tessalonicenses 2:11-12—parecem indicar que Deus não simplesmente permite o mal existir, mas de alguma forma o causa. Eu creio nisso, mas também creio que Deus não pode ser o autor do pecado, visto que ele é santo e não há trevas nele (I João 1:5), e ele é muito puro até mesmo para ‘contemplar o mal’ (Habacuque 1:13). Você pode explicar como estas coisas podem ser harmonizadas?”
No último artigo sobre este assunto que é colocado pelo nosso correspondente, eu estabeleci especialmente dois pontos: 1) O termo “permissão” não parece adequado para escapar da acusação de que Deus é o autor do pecado, nem para descrever suficiente e fortemente a soberania de Deus em relação ao pecado. 2) Devemos manter a forte ênfase da Bíblia que inescapavelmente nos ensina que a soberania de Deus sobre o pecado é completa.
Mas, como o correspondente aponta, Deus nunca pode ser chamado de o autor do pecado; e nós também somos responsáveis diante de Deus pelos nossos pecados e seremos justamente punidos no inferno eterno por causa do pecado [caso não sejamos salvos]. A Escritura deixa claro que Jesus foi entregue pelo conselho e pré-conhecimento eterno de Deus, e foi também crucificado pelas mãos de ímpios. Herodes e Pôncio Pilatos, juntamente com os judeus, fizeram a Cristo o que Deus tinha determinado antes de ser feito.
Este problema certamente não é uma novidade do nosso presente tempo; ele foi discutido inúmeras vezes na história da igreja. Nem eu reivindico alguma luz original sobre o problema ou uma capacidade de entender como tanto a soberania de Deus como a responsabilidade do homem podem ser mantidas.
Mas há quatro ou cinco considerações que precisam ser feitas sobre esta questão.
A primeira é que o problema é abstrato num certo sentido. Todo homem no universo, incluindo nós, sabe que somos responsáveis diante de Deus pelos nossos pecados. Nós sabemos que, se formos punidos no inferno, seremos punidos justamente. Nós merecemos o que recebemos. Nenhum homem pode questionar isso.
Em segundo lugar, a Escritura não parece reconhecer o problema, nem ela diz algo sobre ele. Deus moveu Davi a levantar o censo de Israel. Davi clamou: “Eu pequei.” Deus puniu Davi por seu pecado e a punição foi absolutamente justa.
Em terceiro lugar, o cerne da questão é este: Qual é a relação entre a vontade de Deus e a vontade do homem? Eu formulei a pergunta dessa forma porque a vontade de Deus é soberana, e tudo o que o homem faz é feito voluntariamente. O caráter voluntário das ações do homem sempre o torna responsável por elas. Deus não toma o homem pelo cabelo da nuca, por assim dizer, e o faz roubar um automóvel, enquanto o homem diz: “Eu não quero fazer isso. Eu não quero fazer isso.” O homem peca voluntariamente.
Em quarto lugar, o problema é que simplesmente não podemos entender exatamente como a vontade soberana de Deus toca a nossa vontade; isto é, qual é a relação entre a vontade de Deus e a nossa vontade. Mas esta incapacidade de entender não me incomoda nenhum pouco. E ela não me incomoda simplesmente porque eu não posso entender a obra de Deus em cada uma das partes da criação. Eu não posso entender como Deus faz a grama crescer. Eu não posso entender como Deus move os planetas em suas órbitas ao redor do sol em nosso sistema solar. E, na realidade, nenhum cientista pode entender completamente estas coisas. Todos os caminhos de Deus são inescrutáveis. É estranho então que eu não posso entender a relação entre Deus em sua obra soberana e o homem?
Em quinto lugar, a soberania de Deus e a responsabilidade do homem não são contraditórias. Podemos não entender a relação, mas elas não contradizem uma a outra. Elas não contradizem uma a outra mais do que o crescimento de um arbusto de rosa contradiz o controle providencial de Deus dele. De fato, eu ouso dizer que um entendimento verdadeiro da responsabilidade do homem reside sobre a verdade da soberania absoluta de Deus.
Finalmente, estas duas verdades se harmonizam da seguinte forma: a vontade de Deus é soberanamente executada de tal forma que neste ponto onde a vontade de Deus toca a vontade do homem, a vontade do homem não é violada. Deus não contorna, coage, força, cancela ou destrói a vontade do homem. O propósito de Deus em sua vontade é realizado. O homem peca voluntária e deliberadamente. Ele é, portanto, responsável.
Você diz que não pode entender? Bem, e daí? Diga-me uma obra do grande e glorioso Deus que você entenda. Não há nenhuma. Curvemos-nos em reverência e temor diante daquele cujos caminhos são inescrutáveis.
Eu não posso me refrear de um último comentário, feito originalmente por meu pastor (quando eu era um jovem) e professor no Seminário, Herman Hoeksema. Numa palestra sobre o assunto da soberania de Deus e a responsabilidade do homem, ele disse algo mais ou menos assim: Se eu tivesse que escolher entre a soberania de Deus e a responsabilidade do homem—certamente, eu não tenho que fazer esta escolha; mas se eu tivesse que escolher entre as duas coisas, dê-me a soberania de Deus. Eu acrescento meu “sim” a isto.
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